Madeira que cupim não rói

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicação: 27/09/2024 03:00

O pernambucano Paulo Rodrigues Machado, amigo fraterno, leitor antigo deste Diario e há anos radicado em Curitiba, foi quem lembrou do mais representativo e expressivo exemplo do recifense que melhor pintou a própria aldeia e se tornou universal: nosso conterrâneo Cícero Dias, consagrado autor do monumental painel “Eu Vi o Mundo... Ele Começava no Recife”, obra que irrompeu o cenário modernista no país e se tornou eterna.

Radicado em Paris, preso durante a ocupação da França pelos nazistas, Cícero Dias havia sido exiliado pela ditadura de Getúlio Vargas. Cidadão do mundo, casou-se com a francesa Raimond e, com ela, sempre passava os fins de ano no seu Recife. Cicero Dias continua presente no Recife. É o autor da estilizada “Rosa-dos-Ventos”, estampada no chão da Praça do Marco Zero.

Já o amigo dele, o francês Marcel Morin, usou os pincéis da indignação para limpar sua cidade dos nazistas e restaurar a liberdade em sua pátria. Herói da Resistência, preso e mutilado, teve a perna amputada, Marcel Morin foi nomeado em 1955, cônsul da França no Recife. Ficou aqui até ser expulso pela ditadura militar brasileira, em 1966.

Durante essa época, o herói Marcel Morim viveu o Recife, conviveu com nossa gente, adotou o carnaval, o frevo e encantou-se com os blocos líricos. Amigo pessoal da família Miguel Arraes, protetor dos exilados brasileiros, Morin foi o elo mais forte que uniu os que só sabiam dizer sim e os que aprenderam a dizer não.

Quando, em 1962, semanas após a folia e a escolha dos campeões do carnaval recifense, o cônsul francês estava na avenida. Madeira do Rosarinho perdeu para Inocentes e sentiu-se injustiçada. Queixou-se. Poucos ouviram até encontrarem a solidariedade e a mão amiga do compositor Capiba. Foi ele quem demoveu a diretoria de Madeira da ideia de abandonar o carnaval e não participar do desfile dos campões. E compôs o primeiro frevo de bloco de protesto que se tem notícia: - “Madeira que cupim não rói”. Seria cantado na passarela. Em protesto diante dos juízes.

O clube sentiu-se redimido e preparou homenagem para Capiba, entrega de troféu, um grito de carnaval fora época. Recife era uma festa. Na noite marcada, os amigos estavam na sede do clube em Ponto de Parada. Já não cabia mais ninguém no salão, quando o coral do clube começou a cantar. Alguém sugeriu que todos acompanhassem o vocal, mas poucos haviam decorado a letra. Não seria problema, decretou Morin: “Quem non cantar com os pulmons cante com o corazon...”. “Cette musique est um hine revolucioneire, monsieur Capibá...”

E todos cantaram: “Madeiras do Rosarinho/ Vem a cidade sua fama mostrar/ E traz com seu pessoal/ Seu estandarte tão original/ Não vem pra fazer barulho/ Vem só dizer, e com satisfação/ Queiram ou não queiram os juízes/ O nosso bloco é de fato campeão

E se aqui estamos, cantando esta canção/ Viemos defender a nossa tradição/ E dizer bem alto que a injustiça dói/ Nós somos Madeira de lei que o cupim não rói”.

Poucos anos depois, em 1966, Marcel Morim foi expulso do Brasil pelo governo militar. Ainda assim, sempre vinha rever os amigos nos finais dos anos seguintes. Quando não pôde mais viajar, mandava a mensagem que ainda tenho comigo: Monsieur Aldô, “nós somos daquela madeira que cupim não rói!”.