No céu (e inferno) da Boca Universo do lendário polo cinematográfico conhecido pelas pornochanchadas inspira série exibida a partir deste domingo na HBO

Fernanda Guerra
e Gabriel Trigueiro
edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 24/05/2015 03:00

O mítico ambiente do polo cinematográfico Boca do Lixo, pérola da indústria cultural do país emergida na São Paulo dos anos 1960 e 1970, é a peça-chave da primeira série de época da HBO no Brasil. Magnífica 70 estreia neste domingo na televisão por assinatura, às 21h, com uma trama recheada de censura, repressão individual, liberdade, pornochanchada e obsessão por cinema. O desafio é abordar a vida pessoal e profissional das pessoas ligadas à produção dos filmes - sobretudo as pornochanchadas, pelas quais o local ficaria conhecido - a partir da ótica de personagens com vida dupla, como um censor fascinado por uma atriz pornô.

“A série não é um documentário sobre ditadura ou Boca do Lixo. A gente fala de paixão pelo cinema, das fases de produção de um filme daquela época e de conflitos de personagens”, antecipa o protagonista Marcos Winter (o Vicente). Ele será o censor casado com Isabel (Maria Luisa Mendonça) e apaixonado pela atriz Dora (Simone Spoladore), alcunha artística de Vera. Caberá a Spoladore - inspirada na musa do cinema marginal Helena Ignez - protagonizar as cenas de nudez.
“Ela potencializa o feminismo na personagem. É uma mulher forte”, diz a atriz. “A série não é erótica. É um drama sobre pessoas que faziam filmes na época. Na série, a nudez foi inserida dentro de uma estrutura dramática. Os filmes da Boca tinham característica ousada”, conclui Claudio Torres, diretor com Carolina Jabor.

A reconstrução de época se valeu da consultoria de um personagem crucial à Boca: Alfredo Sternheim, 72 anos, crítico de cinema e diretor de 20 produções - entre elas, Herança dos devassos, Violência na carne e Fêmeas que topam tudo. Coube a ele a árdua tarefa de ajudar a série a reproduzir com fidelidade o ambiente, sem folclores ou preconceitos. “As pessoas pensam que a Boca do Lixo era um antro de mafiosos, mas o clima nas gravações era até família”, conta. Para ele, o legado do polo foi mostrar que é possível fazer cinema brasileiro com diversidade de temas e capacidade de autofinanciamento - impensável hoje, em um mercado baseado em patrocínios através de renúncia fiscal.

Alfredo lembra que saiu da Boca o único filme brasileiro até hoje premiado com a Palma de Ouro em Cannes - O pagador de promessas, de Anselmo Duarte (1962). Credita a gradual migração para as pornochanchadas, e já no fim, para o sexo explícito, às demandas específicas de mercado em uma época de repressão, inclusive sexual. “O cinema era onde se tinha acesso ao erótico. Não havia computador, DVD nem videocassete. O sexo gerava catarse e vendia muito”.

Tanto que com o sucesso no Brasil do filme japonês o Império dos sentidos, no fim da década de 1970, os distribuidores passaram, diz, a cobrar mais sexo nos filmes, com atrizes e atores brasileiros, com quem o espectador pudesse se identificar. A exigência afugentou estrelas da Boca, como a atriz Helena Ramos, mas não foi, para Alfredo, o principal motivo do fim do polo.

Diz o diretor que a Embrafilme, estatal que distribuía películas no país, sediada no Rio de Janeiro, passou a ser cada vez mais monopolizada por produções fluminenses, dificultando o trabalho dos cineastas de São Paulo. “A Embrafilme anulou nossa força e perdemos o alcance”, conta. O polo, que chegou a ter pelo menos dez produtoras atuando ao mesmo tempo, foi minguando até a extinção completa no fim da década de 1980 e a transformação do perímetro, no Centro de São Paulo, na atual Cracolândia. Os tempos áureos voltam à memória com os 13 capítulos da série da HBO exibidos a partir deste domingo.

top4boca

Mainstream
Filmes que escaparam ao rótulo de pornochanchada

Independência
ou morte (1972)
Lançado nos 150 anos da Independência, traz Tarcísio Meira como Dom Pedro I

O pagador de promessas (1962)
Único filme brasileiro premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes

A dama do Cine Shangai (1987)
Maitê Proença interpreta musa cheia de mistérios

A moreninha (1970)
Adaptação, com Sônia Braga, do clássico de Joaquim Manuel de Macedo

Underground
Filmes conhecidos pela profusão de sexualidade

Oh! Rebuceteio (1984)
Dirigido por Cláudio Cunha, conta história de uma peça teatral-experimental-erótica

Coisas eróticas (1981)
Considerado o marco inicial do sexo explícito
no cinema brasileiro

Mulher objeto (1981)
Principal sucesso de Helena Ramos, a musa suprema da Boca do Lixo

A noite das taras (1980)
Três histórias dirigidas
por David Cardoso e
outros mitos da Boca

três perguntas >> Alfredo Sternheim

Magnífica 70, produção na qual você trabalhou como consultor, parte da história de um censor que se apaixona por uma atriz de pornochanchadas e depois vira diretor de filmes. A série é fiel à verdadeira Boca?
A história é bizarra, mas a série é muito fiel no que diz respeito à recriação do ambiente e do período histórico. As pessoas acham, por exemplo, que todo mundo se drogava na Boca, mas eu produzi 20 filmes lá e nunca vi droga, só alcoolismo (risos). As mulheres que tiravam a roupa nas pornochanchadas geralmente eram casadas. A Boca foi muito estigmatizada, levei muita ‘pedrada’ ao longo da vida por ter feito parte dela, mas o saldo que ficou, pra mim, foi positivo.

Fortunas foram feitas na Boca ou isso é mais uma das lendas sobre o polo?
É uma lenda. Alguns poucos, como David Cardoso (ator e diretor) e Oswaldo Massaini (produtor e distribuidor) ganharam muito dinheiro, mas foram exceções. Eu, por exemplo, tenho 72 anos, ando de ônibus e vivo de free-lances como jornalista. Recebo aposentadoria que sozinha não é suficiente para me sustentar.

Para você acha que ainda há chance para um cinema sem subsídios no Brasil?
Deveria haver. É um absurdo torrar o dinheiro que se gastou em Chatô, o rei do Brasil (a produção levou 20 anos para ficar pronta e captou cerca de R$ 65,6 milhões via leis de incentivo fiscal). Há muitas coisas para se fazer com dinheiro público no Brasil, que são mais importantes do que filmes.