A música de Oz Apesar de belas interpretações, detalhado desenho de produção e construção dramática sólida, imagem lavada e pasteurizada de "Wicked" prejudica a imersão na fantasia

André Guerra

Publicação: 21/11/2024 03:00

É interessante que os musicais sofram de uma resistência tão grande de parte da plateia e, ao mesmo tempo, tenham encontrado um terreno tão rentável na onda de adaptações de clássicos da Disney ou da Broadway. E, embora a iconografia de O mágico de Oz esteja entre as mais difundidas da cultura pop, seus desdobramentos até Wicked são tantos que podem deixar alguns espectadores perdidos.

Relembre-se: o longa clássico de 1939, de Victor Fleming, é baseado no livro O maravilhoso mágico de Oz, de L. Frank Baum, publicado em 1900. Essas obras geraram, em 1995, o romance Wicked: A história não contada das Bruxas de Oz, de Gregory Maguire, por sua vez adaptado para um dos grandes sucessos da Broadway, que estreou em 2003. Altamente premiado e com uma base de fãs muito consolidada, o musical é agora trazido para o cinema em duas partes - e a primeira é esta que acaba de entrar em cartaz.

Em Wicked: Parte 1, como aparece na tela (a segunda tem previsão de estreia para 2025), acompanhamos a Bruxa Má do Oeste e a Bruxa Boa do Sul antes de assim serem chamadas. Elphaba (Cynthia Erivo) nasceu com a cor verde e sofre com o desprezo do pai e a discriminação de todos a sua volta, o que começa a mudar quando chega à Universidade Shiz e cai nas graças da diretora Madame Morrible (Michelle Yeoh), despertando inveja da mimada e popular Glinda (Ariana Grande) - uma rivalidade que aos poucos se transforma em uma amizade improvável.

Apesar do musical da Broadway minimizar alguns dos componentes mais sombrios do livro, sobretudo as alegorias ao fascismo, é interessante como a cuidadosa construção dramática de Wicked traz esses paralelos de maneira apropriadamente contemporânea. O fato de o longa já abrir com uma música cínica que profere palavras de ódio e violência com delicadeza e tons rosados já deixa claro como essa vertente da obra original não vai ser perdida aqui, felizmente.

A atuação de Cynthia Erivo é o que essa atualização tem de mais interessante, já que suas reações são cheias de duelos internos entre a contenção e a explosão de raiva, entre o naturalismo e a teatralização esperada de um musical. É uma interpretação muito mais carregada e contrastada do que qualquer elemento visual de Wicked, cuja direção de Jon M. Chu (Podres de ricos) desvaloriza seus notáveis figurinos e design de produção com uma comprometedora falta de saturação e vivacidade na fotografia.

O uso hegemônico da imagem digital vem provocando uma plasticidade excessiva nos blockbusters há anos, problema que contaminou boa parte da produção comercial de fantasia. Uma luz difusa parece buscar um meio termo industrial que não provoque as reações fortes que, supostamente, um uso excessivo do colorido pode desencadear. E essa talvez seja a razão de uma aceitação maior da parte do público com esse tipo de musical, no qual o fantástico está sempre em um controle, da luz à encenação. O pendor cafona e exagerado inerente ao gênero é preterido em prol da funcionalidade, o que mina a personalidade visual dos diretores e devolve à plateia um produto seguro sob encomenda.

Um dos números emblemáticos da peça, Popular, é dos poucos em que o filme se deixa tomar pelo rosa intenso, que, de certa forma, também brota da divertida atuação de Ariana Grande como Glinda. Já um dos momentos climáticos, na última sequência, põe as protagonistas numa incompreensível escuridão, abafando a força da icônica canção que fecha este primeiro ato. Mesmo que outros números sejam cantados e coreografados com capricho e as demais interpretações levem o material a sério, Wicked é prejudicado por essa pasteurização que impede a magia de realmente desafiar a gravidade.