Lei de Responsabilidade Fiscal vira letra morta Criada há 20 anos, a LRF esbarra no desrespeito generalizado às regras de uso do dinheiro público

Publicação: 09/03/2020 03:00

No ano em que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) completa duas décadas, o quadro financeiro dos estados é tão crítico quanto era quando a legislação foi criada justamente para ajudar os entes federativos a reequilibrar as contas. Considerada excelente por advogados tributaristas e especialistas em finanças públicas, a LRF vem sendo descumprida e sofre mudanças institucionais por conta das diferentes interpretações dos Tribunais de Contas Estaduais (TCEs), que chancelam a maquiagem dos dados fiscais apresentados pelos governos. A contabilidade criativa que deu origem às pedaladas fiscais, que provocaram o impeachment da presidente Dilma Rousseff, também conta com o aval do Judiciário e do Legislativo.

A despreocupação com as regras da LRF é tanta que, em 2018, 11 estados ultrapassaram o limite de 60% da relação despesa com pessoal com a Receita Corrente Líquida (RCL), uma das medidas mais importantes da lei (saiba mais no quadro ao lado). Em 2019, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul extrapolaram o teto do endividamento, de 200% da RCL, outra norma da LRF que proíbe a União de dar aval para novos empréstimos aos superendividados. Minas Gerais, cuja despesa com pessoal é de quase 80%, ignora a sanção prevista na legislação ao conceder reajustes ou promoções ao ultrapassarem o limite. Recentemente, deu aumento de 41% aos policiais, com a aprovação da Assembleia Legislativa. No ano passado, o Legislativo do Rio de Janeiro, que está no Regime de Recuperação Fiscal, autorizou o reajuste dos próprios servidores, na contramão.

“INCOMPLETA”

Sancionada em maio de 2000, a Lei Complementar nº 101 até hoje está incompleta, diz José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e um dos autores da LRF. “Não fixaram limite para dívida federal, não criaram conselho fiscal, não revisaram limites estaduais. Mas não tenho dúvidas de que, sem a LRF, o cenário fiscal atual seria muito mais grave”, afirma. Para garantir avanços, o professor destaca que os desafios serão completar sua regulação, acompanhar a lei geral de orçamento, que precisa ser aprovada, pois a vigente é de 1964, e promover as mudanças que a revolução digital exigirá. “Lei é para ser cumprida, e quem deve assegurar isso são os tribunais de contas, e, no limite, o Ministério Público e a Justiça.”

Os TCEs, contudo, não seguiram uma padronização e passaram a adotar metodologias diferentes para avaliar as contas públicas, ressalta Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas. “É preciso uniformizar os procedimentos e mudar a forma de indicação dos ministros (escolhidos pelos governadores), com os tribunais sendo apêndices do Executivo”, assinala. Para resolver isso, bastaria aprovar uma das 70 medidas de combate à corrupção que estão paradas no Congresso. “A LRF é uma boa lei, se tivesse sido cumprida. As burlas ocorrem há muito tempo, mas a situação fiscal dos estados não era tão grave”, acrescenta.

Na opinião de Mirian Lavocat, tributarista sócia do Lavocat Advogados, a lei só funcionou corretamente por dois anos, de 2000 a 2002. “Ao fim do governo FHC, houve um corte. Lamentavelmente, porque é uma lei belíssima, que garante a consciência do Estado da necessidade de racionalização de gastos. A União virou uma grande gastadora e os estados, também”, diz. Muitas sanções não foram aplicadas e, sem punição, as irregularidades se multiplicaram. “A exceção foi a Dilma”, lembra.

Manobras contábeis

A economista Selene Peres Nunes, outra autora da LRF, ressalta que, se a lei tivesse sido respeitada pelos governadores, os estados não estariam em calamidade fiscal em sua grande maioria. Apesar de ter funcionado no início, artifícios contábeis foram usados nos últimos anos para evitar o cumprimento. (Correio Brasiliense)

Contas perigosas

Criada em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal é descumprida sistematicamente pelos estados

  • A Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF), sancionada em 2000, tem o propósito de regular a gestão fiscal de governos das três esferas
  • A LRF fixa limites para o endividamento de União, estados e municípios e obriga os governantes a definirem metas fiscais anuais e a indicarem a fonte de receita para cada despesa no orçamento anual
  • Uma das principais medidas da LRF é que os estados não devem exceder o limite de 60% da relação Despesa com pessoal/Receita Corrente Liquida (RCL)
  • Os governos estaduais, no entanto, pressionados pela crise fiscal, encontraram formas de burlar a lei, com o aval dos tribunais de contas estaduais
  • Há diferença nas metodologias de cálculo da despesa com pessoal sobre a RCL das cortes de contas e a aplicada no Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal (PAF), usado pelo Tesouro para identificar as irregularidades
  • Alguns estados não consideram, em suas despesas com pessoal, algumas rubricas importantes, como gastos com pensionistas, imposto de renda retido na fonte (IRRF) e obrigações patronais
Maquiagens

Confira as principais irregularidades cometidas para burlar a LRF

Na Receita Corrente Líquida

  • Burla de exclusão de IRRF
  • Criação de fundos de receita
  • Aporte para deficit atuarial dos fundos de previdência versus cobertura de deficit financeiro
Na despesa com pessoal
  • “Condomínio” de limites
  • Burla de exclusão de inativos, pensionaistas, IRRF
  • Aumento indevido de indenizações e consultorias
  • Burla de abrangência: exclusão de programas voluntários e realização de despesas “fora” do serviço público, com burla ao concurso público
  • Despesas de execício anteriores
Divergências
Os relatórios de gestão fiscal (RGF) dos estados diferem dos dados apurados pelo PAF

Comparativo

Despesa com pessoal/receita corrente líquida em 2018 de todos os poderes (em %)

Estado     PAF         RGF

RJ          63,56     46,04
RS         66,87     54,44
TO         79,22     68,13
GO         65,52     54,67
MS         63,55     53,74
AC         65,81     56,81
PI          65,27     56,77
AP          56,18     49,32
PR          59,30     53,05
RN          66,44     71,01
CE          56,28     51,71
DF          50,27     45,73
AL          58,96     55,33
BA          59,42     56,05
SP          54,22     51,28
PB          62,78     60,25
RR         57,92     55,62
MG         78,13     75,86
RO         53,4       51,23
MT         69,27     67,47
SE          59,07     57,36
ES          52,30     50,66
PE          58,45     56,86
AM         54,37     55,84
PA          57,18     56,22
SC          59,25     58,40
MA          57,34     56,51

Mediana   59,25     55,84

Fontes: Tesouro Nacional e Lei Complementar nº 101/2000