Nordeste foi região mais prejudicada pelo golpe
Ditadura concentrou renda, aumentou a desigualdade e afastou da política os nomes mais combativos
Vandeck Santiago
vandecksantiago.pe@dabr.com.br
Publicação: 31/03/2016 03:00
Pois bem, o Brasil perdeu a contribuição dos três de uma tacada só. Aconteceu logo após o golpe de 1964. Celso Furtado, imaginem, foi cassado logo na primeira lista de cassações, de 9 de abril. E Paulo Freire, vejam só, chegou a ser preso - passou 72 dias na cadeia. Quando saiu, partiu para o exílio.
Se a perda de três nomes desse nível seria um prejuízo tremendo para um país, imaginem para uma região. E imaginem se a região for a mais pobre do país. Pois bem, aconteceu: a região onde os três atuavam era o Nordeste.
Se este fosse o único prejuízo trazido pelo golpe civil-militar de 1964 - que começou em uma data como a de hoje, 31 de março, e consolidou-se no dia seguinte -, já seria suficiente para merecer a condenação de todos que desejam um país justo e democrático para todos. Os danos, porém, foram bem maiores.
O golpe daquele ano implantou uma ditadura que durou 21 anos. Cassou políticos e intelectuais, afastou sindicalistas combativos, instituiu a censura na imprensa e nas artes, calou as universidades, prendeu opositores, torturou, concentrou renda nas mãos dos mais ricos, aumentou a desigualdade social, fez crescer o êxodo rural.
Tirou de cena políticos como Miguel Arraes, Leonel Brizola, João Goulart, Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda (que estimulou o golpe e acabou sendo tragado por ele), Pelópidas da Silveira, Francisco Julião, Jânio Quadros, Waldir Pires, Seixas Dória (governador de Sergipe), Djalma Maranhão (prefeito de Natal,RN) e dezenas de outros. O que houve na política aconteceu também nos sindicatos, entidades do movimento social, universidades e diversas outras áreas. Se vocês me permitem uma analogia com o futebol, é como se de repente os times que hoje estão na Série A do campeonato brasileiro fossem afastados e substituídos por equipes das séries B e C, e até D, em alguns casos. Saíram os que desejavam mudanças, e entraram os subservientes, que aceitaram a ruptura da democracia.
Em momentos assim, os maiores perdedores são os mais pobres, que perdem seus principais defensores e o poder de pressão que desfrutam num ambiente de eleições livres. Foi isso que aconteceu em 1964, e quem atesta é ninguém menos que Celso Furtado, em depoimento dado em 2004, ou seja, 40 anos depois do golpe, com a poeira baixada e tempo de sobra para analisar o que aconteceu. “Tenho a impressão de que o Nordeste, onde eu estava na época, foi a região mais prejudicada pelo golpe”, diz Celso Furtado. “A região do país que havia acumulado maior atraso social era o Nordeste. O atraso aumentou ainda mais com a mudança. O movimento de 1964 passou despercebido em várias partes do país. Foi um golpe a mais, mesmo em São Paulo houve atendimento de certos interesses econômicos e a região se acomodou”.
Celso Furtado foi o primeiro e o mais prestigiado superintendente da Sudene, criada em 1959, numa época em que a autarquia era ligada diretamente ao presidente da República (por aí vocês veem a prioridade que se dava ao Nordeste na época). Depois do golpe, a Sudene passou a ser subordinada diretamente não ao presidente da República, mas a um ministério. A pessoa que substituiu Furtado no comando da Sudene, no pós-golpe, era um bom técnico, mas hoje você só sabe o nome dele se pesquisar no Google. E da sua gestão não ficou nada grandioso como o que acontecera antes. Taí um bom exemplo da substituição que a ditadura promoveu, quando a Série A foi afastada, dando lugar às séries B e C.
Aí você dá um pulo para 20 de julho de 1978 e acontece um episódio interessante. Delfim Netto era o ministro todo-poderoso da área econômica. Os governadores do Nordeste encontraram-se com ele, em Brasília, e fizeram reivindicações para a região. “O Brasil é uma nação”, respondeu Delfim. “E a proposta do governo é desenvolver todas as regiões, e não apenas esta ou aquela”. Toda a prioridade que o Nordeste tivera até então, nos governos JK e João Goulart, antes do golpe, tornara-se uma simples referência do passado. A frase de Delfim era o epitáfio do tempo que passara.