Somos bárbaros, a dor dos animais nos diverte
Um espanhol acaba de morrer na arena, mas esportes como touradas, rodeios e vaquejadas resistem
Luce Pereira
lucepereira.pe@dabr.com.br
Publicação: 13/07/2016 03:00
Digamos que quem gosta e/ou apoia esportes nos quais animais são maltratados nunca tenha ouvido falar no jurista inglês Jeremy Bentham (Londres,1748-1832). No entanto, não duvidaria nem um pouco de que já saímos (faz tempo) da Idade Média e, só por isso, já conseguiria entender um dos mais famosos enunciados de Bentham - “O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: eles podem sofrer”. Uma vez que arenas e outros cenários de atrocidades continuam atraindo multidões, a conclusão parece bastante óbvia - o movimento que no século 18 iluminou a razão em nome da busca pela liberdade, deixou um lado da natureza humana às escuras. É este lado que chega aos dias de hoje e teima em chamar de cultura e tradição o que não passa de gosto pela barbárie. Contra esta herança nada ética, nada humana, um verdadeiro exército se multiplica nas redes sociais, tentando sensibilizar o poder público para a necessidade de acabar para sempre com espetáculos sangrentos ou onde haja maus-tratos às espécies: touradas, rodeios, rinhas, vaquejadas, só para citar alguns. Grupos abertos e fechados, comunidades e movimentos já somam mais de 40, apenas no Facebook.
Estranhamente as populações, que deveriam se mobilizar de forma incansável em defesa do fim destas modalidades de entretenimento, se dizem chocadas diante de episódios de enorme repercussão como a morte de Víctor Barrio, 29 anos, sábado, na cidade espanhola de Teruel. Barrio foi o primeiro toureiro a morrer em uma arena, no século 21 - e na frente de câmeras de televisão, o que acabou detonando uma guerra de opiniões nas redes sociais. Porém, detalhe: muitas a favor do touro, com expressões que deixavam antever até certa alegria; outras contundentes, como a que manifestou o rapper Pablo Hasel, em sua conta no Twitter: “Se todas as touradas terminassem assim, mais gente iria vê-las”, escreveu, sendo apoiado por centenas de seguidores. Se é comportamento desprezível se divertir com o sofrimento e morte de um animal, é inominável se comprazer ante um desfecho como o que teve a apresentação de Barrio, desde muito jovem habituado a ver em um toureiro um herói. E então as duas partes - contrários e simpatizantes - transformaram o espaço em campo minado, com a associação nacional que cultua o esporte prometendo abrir ações judiciais para punir os autores das postagens mais virulentas, enquanto o outro lado fazia ameaças escancaradas a jornalistas defensores da causa.
Deixando a cruel realidade que a tradição ancestral lega, na Espanha, com estimados 50 mil touros morrendo por anos, só em decorrência das festas de rua, passamos ao nada humano cenário brasileiro dos rodeios, vaquejadas e rinhas, que atraem respeitáveis multidões e se transformam em via de lucro fácil para promotores e participantes dos eventos - nos dois primeiros casos, quase sempre engordados por verbas de patrocínio e do poder público. Nenhum dos apreciadores de ambientes feitos para divertir multidões às custas do sofrimento das espécies utilizadas nas disputas parece se sensibilizar com os crescentes apelos emitidos pelo mundo em favor da dignidade dos animais, do direito que eles têm à vida, garantido, inclusive, em declaração universal. A indiferença resulta, sobretudo, de anos de omissão dos governos, que não apenas não educam para uma nova consciência em relação ao assunto como, de forma direta ou indireta, apoiam e legitimam este tipo de violência.
No entanto, entre a vida e a tradição (ou qualquer expressão cultural) não deveria restar qualquer dúvida. Afinal, desde quando os animais começaram a ser sacrificados em nome da filosofia do “pão e circo”, as luzes de muitos séculos inundaram o pensamento, a consciência. É no mínimo desconcertante que um lado do mundo assista ao esplendor da tecnologia, à luz do respeito aos direitos universais, enquanto o outro, como no tempo dos bárbaros, divirta-se vendo animais sangrando, numa luta absolutamente desigual pela vida. A inversão da lógica, que prevalece entre apreciadores de tais espetáculos, permite até uma pergunta: quem ali é mesmo o “animal”?
Estranhamente as populações, que deveriam se mobilizar de forma incansável em defesa do fim destas modalidades de entretenimento, se dizem chocadas diante de episódios de enorme repercussão como a morte de Víctor Barrio, 29 anos, sábado, na cidade espanhola de Teruel. Barrio foi o primeiro toureiro a morrer em uma arena, no século 21 - e na frente de câmeras de televisão, o que acabou detonando uma guerra de opiniões nas redes sociais. Porém, detalhe: muitas a favor do touro, com expressões que deixavam antever até certa alegria; outras contundentes, como a que manifestou o rapper Pablo Hasel, em sua conta no Twitter: “Se todas as touradas terminassem assim, mais gente iria vê-las”, escreveu, sendo apoiado por centenas de seguidores. Se é comportamento desprezível se divertir com o sofrimento e morte de um animal, é inominável se comprazer ante um desfecho como o que teve a apresentação de Barrio, desde muito jovem habituado a ver em um toureiro um herói. E então as duas partes - contrários e simpatizantes - transformaram o espaço em campo minado, com a associação nacional que cultua o esporte prometendo abrir ações judiciais para punir os autores das postagens mais virulentas, enquanto o outro lado fazia ameaças escancaradas a jornalistas defensores da causa.
Deixando a cruel realidade que a tradição ancestral lega, na Espanha, com estimados 50 mil touros morrendo por anos, só em decorrência das festas de rua, passamos ao nada humano cenário brasileiro dos rodeios, vaquejadas e rinhas, que atraem respeitáveis multidões e se transformam em via de lucro fácil para promotores e participantes dos eventos - nos dois primeiros casos, quase sempre engordados por verbas de patrocínio e do poder público. Nenhum dos apreciadores de ambientes feitos para divertir multidões às custas do sofrimento das espécies utilizadas nas disputas parece se sensibilizar com os crescentes apelos emitidos pelo mundo em favor da dignidade dos animais, do direito que eles têm à vida, garantido, inclusive, em declaração universal. A indiferença resulta, sobretudo, de anos de omissão dos governos, que não apenas não educam para uma nova consciência em relação ao assunto como, de forma direta ou indireta, apoiam e legitimam este tipo de violência.
No entanto, entre a vida e a tradição (ou qualquer expressão cultural) não deveria restar qualquer dúvida. Afinal, desde quando os animais começaram a ser sacrificados em nome da filosofia do “pão e circo”, as luzes de muitos séculos inundaram o pensamento, a consciência. É no mínimo desconcertante que um lado do mundo assista ao esplendor da tecnologia, à luz do respeito aos direitos universais, enquanto o outro, como no tempo dos bárbaros, divirta-se vendo animais sangrando, numa luta absolutamente desigual pela vida. A inversão da lógica, que prevalece entre apreciadores de tais espetáculos, permite até uma pergunta: quem ali é mesmo o “animal”?