A tortura como método de esmagar a pessoa

Urariano Mota
urarianoms@uol.com.br

Publicação: 30/01/2017 03:00

As notícias sobre o fascismo de Donald Trump chegam nestes dias. Ele fala em reabrir as prisões secretas da CIA no estrangeiro e a continuação do programa de interrogatórios que foi desmantelado em 2009. Palavras de Trump:  “Falei com oficiais dos serviços secretos e perguntei-lhes: ‘Funciona? A tortura funciona?’ E eles responderam-me: ‘Sim, absolutamente!’ Sim, quero trazer de volta a tortura. Quero manter o nosso país a salvo. Eu sempre obedeceria à lei, mas gostaria que a lei fosse expandida. Nós devemos usar algo mais forte do que temos agora. Hoje o waterboarding (afogamento simulado) não é permitido, até onde eu sei. Eu quero que, no mínimo, ele seja permitido”.

Mas alguma vez se justifica a tortura? Acompanhem por favor como se constroem as possibilidades “morais” que justificam o esmagamento de uma pessoa. O recurso da retórica lança hipóteses semelhantes a este encadeamento:

- Você é capaz de matar uma criança?

- Não, claro que não.

- E se a criança fosse uma terrorista?

- Crianças não são terroristas.

- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?

- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.  

- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?

- Eu preferiria morrer à matá-la.

- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?  

- Não sei.

- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?

- Bem, nesse caso...

E nesse caso a tortura estaria humanizada, se me perdoam o absurdo abuso do adjetivo. Para que não vejam nisso um exagero, citemos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: “Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo a estará aplicando em um vizinho do provável terrorista”.

Sobre um torturado e morto na ditadura, no meu romance A mais longa duração da juventude, pude narrar:

“O horror das mortes em 1973 é o retrato do seu último instante físico. Não é justo resumir uma vida humana assim. Sobre o animal sentimos a brutalidade: ‘O novilho continuava lutando. A cabeça ficou pelada e vermelha, com veias brancas, e se manteve na posição em que os açougueiros a deixaram. A pele pendia dos dois lados. O novilho não parou de lutar. Depois, outro açougueiro o agarrou por uma pata, quebrou-a e cortou-a. A barriga e as pernas restantes ainda estremeciam. Cortaram também as patas restantes e as jogaram onde jogavam as patas dos novilhos de um dos proprietários. Depois arrastaram a rês para o guincho e lá a crucificaram; já não havia movimento’...

Penso em Vargas e seu sacrifício, o heroísmo que ninguém notou. Morto como mais um boi, gado abatido qualquer. Se não lhe comemos a carne, comemos a sua grandeza, porque o defecamos em nova brutalidade. Onde está Vargas, onde buscar Vargas? Ele está no ônibus, quando luta febril ao vislumbrar a sua última hora, da qual possui a certeza, e para ela caminha ainda assim? Desta maneira ele ficou adiante, conforme o viu a advogada Gardênia: ‘Vargas, que eu conhecia muito, estava também numa mesa, estava com uma zorba azul-clara, e tinha uma perfuração de bala na testa e outra no peito. E uma mancha profunda no pescoço, de um lado só, como se fosse corda, e com os olhos abertos e a língua fora da boca’. Vargas teria sido puxado por corda para o matadouro? Aos bois partem o rabo, rompem a cartilagem, para assim ele arremeter para o lugar onde o sangram. A homens arrastam? Nos laudos da ditadura, não há uma narração da dor. Mentirosos, chegam a ocultar a causa mortis, esconder lesões, eufemizar a barbárie”.

Eufemismo da barbárie, assim como agora nas declarações de Trump. O terror de Estado está de volta.