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O caboclo do carnaval e uma folia de muitos segredos
Zé Ambrósio queria um olhar cuidadoso sobre as mãos que foram buscar, no mato, a madeira para a lança
Luce Pereira
lucepereirajornalista@gmail.com
Publicação: 24/02/2017 03:00
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Seguiu pensando à noite, enquanto o sono não chegava. No escuro, mal conseguia ver a silhueta da mulher, entregue a um sono profundo. Nada de sexo até depois das Cinzas, assim manda o comprometimento. Logo a madrugada chegaria para pegar o caminho e ir se juntar ao resto do maracatu, na preparação final guiada pelo mestre a fim de que todos pudessem chegar ao Recife em paz e fazer o desfile sob a proteção de espíritos antigos cultuados por índios e negros africanos. Mexia-se vez por outra, ansioso, e então os turistas lhe voltavam à cabeça com jeito de quem via por trás da pesada e colorida roupa um bicho contraditório, que usa cravo na boca e lança na mão. Belo, também, porque o mistério fascina desde que o mundo é mundo. Sim, decerto há pessoas que só faltam lhes beijar a mão, adivinhando-lhes o sacrifício e o amor pelo maracatu, mas essas fazem parte de um grupo bem menor – gente de cultura, gente que até estuda os caboclos e seus rituais para depois fazer livro e dar entrevista sobre eles na televisão e no jornal.
Um galo cantou longe e Zé Ambrósio reafirmou três vezes seu desgosto ante a ignorância e insensibilidade dos turistas, que mereciam ouvir dele uns desaforos ou uma aula sobre sua devoção. Pudesse tirar da boca o cravo, sem deixar o corpo aberto e exposto às perigosas energias da festa, diria que enxergassem naquilo tudo ao menos a ligação dos “folgazões” com o mundo espiritual, conseguida através de banhos com ervas e cheiros, beberagens e orações, tudo parte dos mistérios do maracatu, religião pela qual seria capaz de dar até a própria vida. “Isso é uma brincadeira de muitos segredos, meus senhores”, acrescentaria, procurando impressioná-los mais por essas certezas do que pelo olhar fixo, intraduzível, que surge com o azougue – a cachaça misturada a pólvora engolida antes do cortejo – afinal, é preciso sonhar e vigiar. Queria propor um olhar mais cuidadoso sobre as mãos que foram buscar, no mato, a madeira para a lança, depois trabalhada até fazer jus à perfeição da roupa. E para a própria roupa – lantejoula por lantejoula pregada num desenho que realça a beleza, a fé, e ajuda a esconder a dureza dos outros dias do ano.
Passava pouco das onze horas quando o sono começou a azular os olhos de Zé Ambrósio. E no meio dos desaforos preparados para um dia disparar contra aquela gente de máquinas em punho, que vê nos folgazões apenas personagens do teatro de Momo, surgiu Ogum. O orixá ria-se tanto, e alto, da ingenuidade do caboclo ao dar cabimento àquela gente sem importância que a mulher acordou-se disposta a perguntar se o marido também ouvira. Mas Zé já não estava neste mundo e sim triunfante, com sua lança, sobre as asas do deus do carnaval. Então ela voltou a dormir, imaginando que devia mesmo ter sonhado.