Gabriel García Márquez aos 90 anos

Urariano Mota
urarianoms@uol.com.br

Publicação: 06/03/2017 03:00

 (YURI CORTEZ/AFP)
Neste 6 de março, o gênio de Gabriel García Márquez completaria 90 anos. Na sua ótima biografia escrita por Gerald Martin, podemos ler:

“Gabo se mostrava claramente angustiado. Depois que conversamos sobre seu trabalho e planos por algum tempo, declarou que não tinha certeza se voltaria a escrever. Então ele disse, quase melancólico: ‘Escrevi bastante, não escrevi? As pessoas não podem ficar frustradas, e não podem esperar mais nada de mim, não é?’

Estávamos sentados em imensas poltronas azuis, numa saleta íntima do hotel, de onde se via o anel rodoviário do sul da Cidade do México. Lá fora estava o século XXI, voando. Oito pistas de tráfego incessante.

Ele me olhou e disse:

– Sabe, algumas vezes fico deprimido.

– Como? Você, Gabo, depois de tudo que realizou? Não acredito. Por quê?

Ele gesticulou para o mundo além da janela – a grande artéria de tráfego intenso, a intensidade silenciosa de todas aquelas pessoas comuns vivendo a vida num mundo que não era mais seu -, depois voltou o olhar para mim e murmurou:

– Porque percebo que tudo isso está chegando ao fim”.

Não chegou ao fim. Jamais chegará. Para todos nós, a obra de um criador é sempre um recomeço. Lembro que esse romance em nossa juventude nos deu conforto, humor e um estado de graça para suportar o risco da morte. Foi uma revelação.

As palavras, a frase e o modo de contar de García Márquez nos ensinaram a ler, escrever e contar o mundo. Isso, é claro, já havíamos visto, de modo fundamental, em Cervantes, no Padre Vieira, em Machado de Assis. Isso quer dizer, amigos: narrar, contar uma história, não é dizer, não é o mesmo que falar. Narrar é retirar da realidade mesma, da própria realidade a frase que encarna, que concretiza, que torna imorredoura a sombra, que antes era vaga ou apenas entrevista. Narrar é dar forma ao que antes mostrava apenas traços informes. Gabriel García Márquez se fez o Cervantes do século XX, um criador absoluto. O cara que devolveu a autoestima dos latino-americanos.

Em livros de entrevista, autobiográficos ou biográficos lemos e conhecemos a trajetória da sua vida, e vemos e notamos e aprendemos e apreendemos o escritor antes do sucesso absoluto em todos os continentes, antes de ser o Maestro, o mestre Gabo. Gabriel García Márquez, antes de ser escritor, enfim, era uma alma errante, uma alma perdida a vagar, sem rumo definido. Mas com uma vontade louca de entender o mundo, com uma fome voraz de alimentos de toda sorte, principalmente de literatura.

É exemplar, modelar, a forma com que ele faz tributo e rende homenagens aos grandes que o precederam, inclusive aos grandes que só ele conheceu, porque não ganharam fama. E de tal modo ele lhes reconhece excelência, que parece nos dizer: “olhem, este sim era maior”. E também dos grandes que alcançaram status de criador, como Juan Rulfo, por exemplo, o fecundo romancista que o influenciou, mas não conheceu o boom literário como ele, García Márquez.

Lembro que na pensão, em atividade clandestina, a sua literatura era melhor que cinema, viajar ou beber cerveja. Em meu romance “A longa duração juventude” escrevo:

“Nas mãos de Luiz do Carmo, as páginas de Cem Anos de Solidão voavam, de voo mesmo, não só pela rapidez com que eram passadas, mas com o bater de asas que pareciam se agitar no espaço do quarto da pensão, onde as palavras eram pássaros. Então, se naquela imobilidade ele estava bem, todos estávamos seguros. Enquanto os fascistas não vinham, Luiz do Carmo estava defendido pelo romance de García Márquez”.

Bem compreendíamos. Na adesão de Gabriel García Márquz ao socialismo havia um humanismo luminoso, aquele que narrou as pessoas do povo, o seu lugar, a sua terra, o seu barro fundador, que se fez também nosso. Então voltemos a seu livro máximo, Cem Anos de Solidão, que neste 2017 faz 50 anos de luz. Nele vemos: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para nomeá-las se precisava apontar com o dedo”. Assim foi, assim é. Tudo enfim que continua a ser tão recente, que ainda precisa receber nomes apontados com o dedo.