O Brasil coloca fones nos ouvidos para não se ouvir
Mau uso do acessório é alardeado, mas quem usa quer se desconectar da realidade e ignora perigo iminente
Luce Pereira
lucepereirajornalista@gmail.com
Publicação: 24/03/2017 03:00
E porque já são tantos a buscar o mesmo viés de individualismo, transformou-se em acessório que designa uma tendência – usa quem é “descolado”, do mundo, sempre com um pé no presente e outro no futuro. O lado ruim disso – mas que não parece interessar nem um pouco a essa “tribo” – é o mal que faz à audição, e não faltam estudos mensurando o quanto. Os britânicos têm um que aponta o surgimento da surdez já aos 50 anos, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que se o uso com volume alto se estender por mais de 90 minutos ao dia o usuário pode desenvolver zumbido ou apresentar perda auditiva nos próximos cinco anos. Caso o som esteja na potência máxima, os riscos de isso acontecer aumentam em 70%.
Mas os apelos superam sempre as ameaças de prejuízos futuros para a saúde. A maioria imagina duas hipóteses: ou o resultado dos estudos é exagerado ou os danos acontecerão a perder de vista e em proporção bem menor do que a alardeada. Perguntei, por exemplo, a Antônio, o office boy de um escritório comercial que visito com certa frequência por que estava sempre com fones nos ouvidos e ele respondeu que era “uma maneira de se desligar do mundo”, naturalmente, o mundo que o incomoda, com notícias desagradáveis, prognósticos desanimadores, ruídos que estressam. Mesmo no ônibus, atravessando ruas ou na fila de um banco, não se desgruda do acessório, que pluga ao celular e ouve apenas as músicas com as quais suas emoções e circunstâncias se identificam. Neste caso, hits evangélicos, embora não haja nenhum estudo demonstrando que Deus vá se compadecer da audição de quem exagera no volume e no uso.
Otorrinos dizem que, uma vez lesionadas, as células auditivas não se regeneram e que até a escolha do repertório pode alterar o estado emocional do usuário, pois sons estridentes ativam algumas áreas do córtex auditivo e geram esforço mental no lugar do relaxamento. Evidentemente, o alerta entra por um ouvido e sai pelo outro, quando se sabe até que não são poucas as pessoas dependentes do acessório a ponto de adormecer usando-o. Neste caso, a probabilidade de que as consequências sejam mais graves aumenta muito.
Filosoficamente falando, o Brasil e sua capacidade surpreendente de produzir fatos negativos rumorosos poderia por si só justificar o uso crescente de fones de ouvidos – porque, afinal, ninguém aguenta tanta exposição a uma realidade que esbraveja incessantemente contra os cidadãos – mas é mesmo o viés do individualismo que explica tamanha dependência. Os fones servem, na verdade, para sinalizar sobre uma escolha das mais infelizes: andamos preferindo cada vez mais olhar para nossas próprias carências do que nos enxergarmos como parte de um mundo que clama justamente pelo contrário – fraternidade.