Nise da Silveira e aquela nossa viagem ao Japão Stela Braga foi o braço direito da "doutora" e com quem conheci a floração das cerejeiras, em Tóquio

Luce Pereira
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Publicação: 17/02/2018 03:00

Ela não está mais aqui desde 30 de outubro de 1999, mas esta semana não havia como não lembrá-la com mais força, já que quinta-feira faria 103 anos. Voltei o pensamento para Nise da Silveira, maior ícone da psiquiatria no Brasil, e transportei-me para uma viagem feita em 2007 à China, ao Japão e à Alemanha. Seria a primeira vez na Ásia, é verdade, mas apenas outra ida à Europa, não fosse por um luminoso detalhe: viajei na companhia de Maria Stela Braga, àquela altura com 82 anos e uma lucidez impressionante. Tratava-se da mulher que por longos anos fora o braço direito da “doutora” e uma das poucas pessoas com acesso à vida pessoal e ao lugar onde morava rodeada por seus muitos gatos. Ali, falamos mais do que de costume sobre a vida que levaram juntas, ao menos em termos profissionais, e é sempre um privilégio conhecer aspectos nunca ou raramente tratados pela imprensa, pela mídia ou por quem se aventura a documentar vida e obra usando recursos audiovisuais.

Ambas alagoanas e ambas de temperamento fortíssimo, desafiaram seu tempo e romperam limites familiares em nome do desejo de transformar uma realidade da qual discordavam desde os tempos de formação acadêmica. Stela revelou que, no primeiro contato com Nise, ela praticamente nem se deu conta de que a jovem a esperava com um pedido para fazer parte da equipe. As palavras saíram tímidas, meio assombradas ante o jeito autoritário da futura chefe e amiga. Mas a insistência e o talento venceram, porque, afinal, ideais e pensamentos afins, além de disposição para alcançar o mesmo objetivo, não faltavam. O tempo se encarregou de mostrar que a parceria entre as psiquiatras iria longe, porque, véspera do Natal de 1956, era inaugurada a Casa das Palmeiras, o “ pequeno território livre” sonhado por Nise, que teria Stela como diretora administrativa. Foram dois endereços até o definitivo, em 1981 (Rua Sorocaba, Botafogo) e uma junção de esforços impressionante. Deus e o mundo acreditavam no projeto de uma psiquiatria humanizada, na qual a afetividade e a arte seriam mais salvadoras do que psicodrogas pesadas, eletrochoques e lobotomias.

Como não acreditar, se todos os envolvidos já vinham instigados pelo assombroso sucesso em que se transformou o Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1946, no Centro Psiquiátrico Nacional, onde a “doutora” enfurecia e desafiava os praticantes da truculenta psiquiatria com crenças bem diferentes? Nise era a determinação em pessoa, revolucionária e inquieta, sem medir esforços para provar que a esquizofrenia deveria ser tratada pelo método batizado como a “emoção de lidar”, antes conhecido como terapia ocupacional. Basta assistir ao filme Nise no coração da loucura, em que uma convincente Glória Pires incorpora a personagem. Escreveu livros, deu aulas e palestras, mobilizou artistas, acadêmicos e intelectuais, despertou o interesse de autoridade mundiais no assunto, como Carl Gustav Jung (a quem foi expor suas ideias e estudos), mas, na reta final, restavam apenas os gatos e as lembranças.

Stela revelou que algumas vezes chegava a receber postais dela queixando-se de que demorava a visitá-la (até me presenteou com um deles). A letra trêmula, quase incompreensível, em nada lembrava a mulher sobre quem o país se desmancha em elogios. Estava só. “Era quase um porco-espinho, de tão avessa a muita proximidade”, confidenciou minha companheira de viagem e disse, rindo: “Mas eu também sou outro, você não acha?”. Fiz que não ouvi e afirmei qualquer coisa sobre a beleza das cerejeiras que tomavam Tóquio naquele dia.