Boicote: calar o outro é prática da ditadura Revolucionário é ir para o enfrentamento e convencer com o seu discurso e sua prática

Vandeck Santiago
vandeck.santiago@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 27/03/2018 03:00

Boicote não é censura - esta é arbitrária e compulsória. O boicote é um instrumento à disposição da população, e adere quem quer. Mas nos últimos tempos no Brasil ele tem perigosamente se revestido de características autoritárias e pueris - como acontece agora na mobilização contra a Netflix, causado pela exibição da série O Mecanismo, de José Padilha. Trata-se não de um documentário, mas de uma obra de ficção baseada na história da Operação Lava-Jato. Que traz logo no seu início a advertência: “Este programa é uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais. Personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”.  

Certo que a obra esticou ao limite do exagero o conceito de “inspirado em fatos reais” - para ficar no exemplo mais badalado, colocou como sendo do personagem que interpreta Lula a famosa frase grampeada do senador Romero Jucá (“estancar a sangria, construir um grande acordo nacional”). Se usarmos o mesmo limite, pode-se até definir a opção do cineasta como desonestidade intelectual  (em entrevista à Folha de S. Paulo, ele disse que não dirigiu nem roteirizou o episódio em que a frase foi pronunciada, mas assumiu a responsabilidade de ter checado os diálogos).

A crítica à série, porém, é uma coisa; outra é defender por isso o boicote à Netflix (o que, para ser levado a sério como argumento, exigiria ampliar a ação para diversos outros destinatários da mesma área).  É aí que entra uma constante presente em movimentos semelhantes no Brasil, nos últimos anos: são ações que tentam negar ao outro o direito de existir ou manifestar suas opiniões. Não se deseja o debate, a criação de oportunidade para mostrar que o outro está equivocado, deixar que as pessoas vejam e tirem suas próprias conclusões (a partir, inclusive, da polêmica em torno da questão). O que se deseja é calar o outro. Aí é o autoritarismo vociferando. Tivemos isso em 2015, quando o Boticário lançou uma campanha no Dia dos Namorados que mostrava casais hétero, gay e lésbico; em 2016, contra o filme Aquarius, e contra vídeos do grupo Porta dos Fundos; em 2017 contra a mostra Queerrmuseu - Cartografia da Diferença na Arte Brasileira, para citar alguns exemplos recentes.  Como tática é discutível; como estratégia é risível. É despolitizadora, porque se omite do enfrentamento com o contrário. E ingênua, porque acha que “ganha” ao impedir a fala do outro.

Nessa caminhada já tivemos até grupos defendendo o boicote às eleições, caso Lula seja impedido de participar.  Na boa: pelas circunstâncias do seu caso, se tem alguém neste país que poderia falar em boicote é  o Lula, se confirmada a impossibilidade de o seu nome constar na lista de votações - seria um equívoco, mas razões pessoais e políticas ele teria para defender a tese. Em vez disso, porém, o ex-presidente já se pronunciou.  “Quando chegar o momento certo, o PT pode discutir todas as alternativas. Eu sou contra boicotar as eleições”, disse à Folha de S. Paulo, em 1º de março.

Essa tendência do boicota aqui-boicota acolá deve-se também ao fato de que a ação é praticada  basicamente no mundo virtual, alicerçada nas redes sociais. Basta apertar um botão para participar. Nada contra, só uma observação.

Como um antigo observador que viveu os anos da ditadura implantada em 1964, sou por definição contrário a boicotes. Em muitos casos - como em eleição, por exemplo - ele significa dar espaço aos, vamos chamar assim, “adversários”. Você explode a indignação num ato de curto prazo e vai pra casa achando que a luta acabou ali. Em 1973 estávamos no auge da ditadura. O presidente era indicado pelos militares e aprovado em eleição indireta pelo Congresso. Boicotar a eleição era a opção aparentemente mais radical, julgavam alguns. Uma forma de tentar mostrar que o regime era ilegítimo. Assim agiriam os que acham que a luta política consiste em extravasar a indignação e pronto. Em vez disso, a oposição lançou uma chapa de anticandidatos: Ulysses Guimarães para presidente e o pernambucano Barbosa Lima Sobrinho para vice. Percorreram o país inteiro, participando de atos políticos, fortalecendo a oposição. Vieram as eleições de 1974 e a oposição venceu em 16 dos 22 estados. A maior derrota sofrida pela ditadura.

Calar os outros é prática de ditadura. Revolucionário é ir para o enfrentamento e convencer com o seu discurso e a sua prática.