RELACõES INTERNACIONAIS » Crônica de Lima brasileira

por Thales Castro
Doutor em Ciência Política. Coordenador do Curso de Ciência Política da UNICAP. Cônsul de Malta e Presidente da Sociedade Consular de Pernambuco.

Publicação: 27/11/2019 03:00

Lima - capital de uma terra mágica cujas origens remontam a sua identidade pré colombiana no contexto do vasto império Inca. Seu fascínio terreno-cósmico, simultaneamente andino e pacífico, reforça a metafísica de uma civilização de luta. Luta, liberdade e louvor - todas essas palavras começam com a mesma letra L - de Lima.

Lima - por um caso fortuito - hospedas a grande final da Taça Libertadores das Américas de 2019. À glória eterna - mote da derradeira batalha campal em único jogo - se mostrou como tônica verdadeira da interação culminada em vitória no milésimo momento da partida já quase perdida - quase... O quase nunca é o todo - como assim vimos nas angústias nervosas de cada um. O jogo do futebol é o próprio palco da vida - mesmo que Severina. Originalmente programada para ocorrer em Santiago do Chile, quisera Deus que as terras peruanas fossem as anfitriãs da maiúscula vitória. O traço irregular e imprevisto do destino uniu três nações - Brasil, Argentina e Peru. Quisera Deus que os caminhos limenhos fossem interseções do doce sabor no grito abafado de milhões de brasileiros que, neste sábado de memória à posterioridade, foram - em maior e ou menor grau – rubro-negros da Gávea. A lealdade de ser brasileiro e pertencer à terra verde e amarela superou, pelo menos para o observador que escreve essa crônica, as colorações dos nossos times locais. Só vimos o Mar Vermelho da conquista diante de Gabriel que anuncia a vitória no final: conjunto e valores individuais dialogaram harmoniosamente tal qual uma sinfonia. Em Lima, superamos o bordão melancólico de sermos campeões morais da Espanha de 1982 com o flamenguista Zico e o visionário Telê Santana. Tivemos o individual e o coletivo como providência e resultado, reforçando a mágica, a beleza e a insistência do acerto.

Lima: também foste a sede da uma Copa América, em 2004, que, semelhantemente, cruzou o destino com a mesma Argentina - não do River Plate de ontem, mas a de Marcelo Bielsa e Tévez. Ali na Lima da Copa América de 2004, a Argentina também estava à frente no placar. A Argentina já acreditava estar com a taça na mão e a faixa no peito. Não se deve - jamais - subestimar o adversário que, hipnotizado por uma força sobrenatural, ousou ter a luta brava dos brasileiros que não desistiram num surto impávido de sobrevida improvável. Não se deve usar a faixa de campeão até que o apito traga o sonoro corte fatídico do fim da estratégia esportiva nas quatro linhas.

Lima: viste o histórico (e quase impossível) gol de Adriano imperador aos 47 minutos do segundo tempo, empatando o jogo e levando aos pênaltis vitoriosos para o Brasil contra a Argentina incrédula e abatida. Debelar o oponente argentino se deu num raro filamento de esperança. Era inacreditável o que nossos olhos enxergavam. O verde e o amarelo brilharam nas montanhas áridas da terra dos incas e das linhas de Nazca.

Lima: as finais de 2004 e de 2019 são as mesmas e trazem a síntese da luta, da bravura e do louvor. O êxito está na persistência. A conquista é suor amargo da dedicação. Acreditar é a única ferramenta possível para os mortais. Aos bravos persistentes, os louros; aos perdedores, todo o nosso respeito e aplausos. A derrota também tem propriedades pedagógicas positivas no campo da mudança, da capacidade de levantar a cabeça diante da dor e do amadurecimento coletivo. Digo isso com propriedade a partir do lócus de fala de um país que perde a final de Copa do Mundo, em sua própria terra, no Maracanaço de 1950 contra o Uruguai de Ghiggia e Obdulio Varela. Afirmo isso a partir do país que fora goleado, vergonhosamente, por 7x1 pela Alemanha no Minerão em 2014.

Lima: parabéns por fornecer a direção desta trama emaranhada do humano que, como a bola, corre pela relva dos desafios da vida líquida. A mudança veio com o técnico Jorge Jesus, maestro da renovada mentalidade estratégica dentro e fora do campo. Coincidência ou destino com 2004 e 2019? As respostas ficam a cargo do leitor. O fato é que a capital peruana foi teatro surreal de inflexão entre a angústia e a euforia.

Lima está, portanto, entre nós: recanto de futebol, de nacionalismo brincante e de alma carnavalesca como fenômeno universal. Lima: impávida pátria libertária, como a vitória de uma vida inteira. Lima que rima com redenção e crença. Lima, às vezes insólita, tão próxima aqui dentro de todos. Lima aqui... para sempre na memória.