Machado e os vermes

Marcelo Navarro Ribeiro Dantas
Membro eleito da Academia Norte-rio-grandense de Letras
mnrdantas@uol.com.br

Publicação: 18/05/2014 03:00

A semana literária foi movimentada com a notícia de que vão reescrever Machado de Assis. Segundo os jornais, uma escritora está dando partida num projeto para redizer, na fala do começo do século XXI, o que ele dissera tão bem na língua do fim do século XIX, para facilitar sua compreensão pelos jovens. A ideia gerou muitas reações indignadas — até se falou em cadeia para quem mutilasse Machado! — e algumas vozes favoráveis, afirmando que, se é para difundir o hábito da leitura entre crianças e adolescentes, vai ser bom, etc.

Acho que o assunto merece uma discussão mais serena. Afinal, sendo extremamente rigorosos, qualquer tradução — e não creio que a maioria dos intelectuais, mesmo os mais ranhetas, queira que todos aprendam todas as línguas para ler tudo no original — já é uma recriação, uma reinvenção. Portanto, no limite, uma profanação da sacrossanta obra original. Então, a condenação exagerada a tais possíveis adaptações do autor de Quincas Borba não faz muito sentido, por esse lado. Nenhuma obra de nenhum autor é intocável. A não ser por motivos de direito autoral que, no caso, não se põem, já que toda a produção machadiana já é de domínio público.

Se alterar uma obra fosse tão absurdo, não se poderia, por exemplo, adaptar nenhum livro para teatro ou cinema. E há quem negue que, por exemplo, “Lolita”, de Stanley Kubrick é — enquanto filme — um trabalho tão respeitável quanto — como romance — o livro de Vladimir Nabokov (para não falar da maravilhosa tradução para nossa língua feita pelo embaixador Jório Dauster)? Além disso, reescrever livros clássicos não é coisa de hoje nem de ontem, nem de anteontem. Num passado distante, fazia-se com as obras que deviam ser lidas pelos príncipes, que, ainda infantes, não tinham estrutura para absorver certas passagens. Ou conhecer desde logo determinadas ideias, ou saber de tais ou quais assuntos inconvenientes. Elas eram censuradas pelos preceptores de Suas Altezas, que delas recebiam edições, digamos, pasteurizadas. Esses exemplares, na França dos reis absolutistas, vinham marcados com a frase “ad usum Delphini” (em latim, “para o uso do Delfim” — que era o título do príncipe herdeiro do trono francês). Há algumas décadas, eram comuns, em nosso país, versões de romances famosos, em geral folhetinescos, como “O Conde de Monte Cristo” ou “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas; “Ben-Hur”, de Lewis Wallace; “Ivanhoé”, de Walter Scott, e que tais, adaptados ou recontados, em edições geralmente ilustradas, para o público infanto-juvenil. Muita gente boa fazia isso. Escritores de nomeada como Carlos Heitor Cony, Miécio Tati, Clarice Lispector e Origenes Lessa, entre tantos outros, para não falar de Monteiro Lobato, que também trabalhava nesse ramo mas foi além, recriando Cervantes dentro do seu próprio universo do Sítio do Pica-Pau Amarelo, com o “Dom Quixote das Crianças”.

O problema, portanto, não está numa suposta intocabilidade de Machado, por mais que repugne a ideia de meter a mão nas linhas deixadas por aquele que foi talvez o nosso maior escritor — único brasileiro a figurar n”O Cânone Ocidental” de Harold Bloom —, nem o suposto inusitado da iniciativa. O problema é que as traduções se justificam pela barreira das línguas. As versões cinematográficas ou teatrais, pela alteração do meio — que já é, por si, outra mensagem, como queria Marshall McLuhan, autor hoje fora de moda —, ou seja, a transmutação de um texto num espetáculo mais visual que textual. E as adaptações de clássicos para a juventude eram praticamente todas de obras estrangeiras, onde o estilo não contava tanto, e sim a história, a aventura, preservadas em grande parte. Nessa linha, se alguém resolvesse recontar para os jovens, como prosa atual, a saga brasileira de “O Uraguai”, de Basílio da Gama, acho que poucos protestariam. Nada disso se compara com reescrever Machado. Daí que acho difícil justificar a iniciativa. Em Machado, a escritura, a estrutura da frase, seu ritmo, enfim, o estilo — como na famosa e desgastada frase de Buffon — é o homem. Cada palavra conta, muito mais que o enredo de seus romances e contos. Dizer que há neles muitos vocábulos difíceis é chancelar a preguiça de quem não quer ir olhá-los no dicionário, e eliminar, do processo de aprendizado da língua, esse trabalho importantíssimo. Se leitores muito novos ainda não estão prontos para ele, que se espere para apresentá-lo mais tarde, quando for tempo de colher maduro um fruto tão precioso. Entregar antes e desnecessariamente uma versão aguada, açucarada, descontextualizada temporalmente, privada quiçá da sutileza, da ironia, da amarga e doce melancolia do Bruxo do Cosme Velho, é um absurdo sem tamanho. Ainda mais se for verdade que isso se fará com financiamento público.

Assim, penso que há, no caso, uma má escolha do autor para reescrever. E parece que quem o elegeu para essa malsinada adaptação não percebe isso. Como os vermes de livros que aparecem justamente num trecho de “Dom Casmurro”: “Meu senhor — respondeu-me um longo verme gordo — nós não sabemos absolutamente nada dos textos que roemos, nem escolhemos o que roemos, nem amamos ou detestamos o que roemos; nós roemos”. Pois é: vão roer Machado.