A glória de Bocage

Heldio Villar
Professor da Escola Politécnica da UPE
heldiovillar@hotmail.com

Publicação: 15/09/2015 03:00

A língua portuguesa celebra, neste 15 de setembro, os 250 anos de um dos seus maiores expoentes: Manoel Maria Barbosa du Bocage. Português de Setúbal, filho de um juiz e ouvidor, o pequeno Manoel teve uma infância triste, vendo aos 6 anos seu pai ser preso sob acusação de desvio de dinheiro público. Tinha 10 anos quando perdeu a mãe e aos 15, logo depois da soltura do pai, entrou como voluntário para o Exército e depois mudou para a Marinha, fazendo curso de guarda-marinha (uma espécie de aspirante). Desertou ao fim do curso, mas findou sendo perdoado e nomeado oficial de marinha para a Índia em 1786.

A essa altura, seus poemas já lhe tinham dado alguma notoriedade em Lisboa. Na viagem para a Índia o navio aportou no Rio de Janeiro e Bocage se apaixonou pela cidade. Tentou ficar lá de vez, mas não teve êxito. Seguiu para a Índia, tornou-se requisitado tradutor e retornou definitivamente a Lisboa em meados de 1790. Por essa época, Lisboa abraçava o arcadismo, uma linha literária que se opunha ao barroco e exaltava os ideais clássicos greco-romanos. Surgira inicialmente uma efêmera Arcádia Lusitana e em 1790 apareceu a ainda mais efêmera Nova Arcádia, à qual Bocage se integrou. Como era praxe, adotou um pseudônimo, Elmano Sadino, notabilizando-se pelo sarcasmo e pela licenciosidade.

A Nova Arcádia, em que pese ter durado apenas 4 anos, incluía poetas do calibre de Nicolau Tolentino e do religioso José Agostinho de Macedo, com o qual Bocage teve embates memoráveis. Num deles, referindo-se ao poema “Oriente” (que Macedo escrevera calcado nos “Lusíadas”), Bocage diz que Macedo, “novo rival de Camões”, queria subir ao Parnaso (monte grego símbolo da arte pura), mas Apolo, o deus que ali residia, não se incomodaria, replicando “eu cá sustento um cavalo,/sustentarei mais um burro”.

Com o fim da Nova Arcádia, Bocage retomou as traduções e seguiu publicando seus poemas, que agora incluíam menções a seus dramas existenciais. Acusado de satirizar o clero e a nobreza, foi preso pela Inquisição e esteve detido, na prisão e em conventos, por mais de um ano entre 1797 e 1798. Solto, abraçou a religião e, até sua morte por um aneurisma rompido, em 21 de dezembro de 1805, escreveu alguns dos mais belos poemas da língua.

O contraste entre o Bocage dos primeiros anos e o dos anos finais é extraordinário. O poeta satírico, burlesco e até escatológico deu lugar ao poeta lírico e devoto. O ponto alto do seu primeiro período são os notáveis epigramas, muitos deles dirigidos à classe médica, como “Lê-se numa sepultura/de antiguidade afonsina:/‘aqui jaz quem não jazera/se jazesse a medicina’.” E também aos ricos, como o do avarento que, recebendo uma pedrada no olho, responde ao médico que lhe cobra 10 moedas pela cura: “Dez moedas por um olho?/ O outro eu dou por isso!” Já ao fim da vida, ele suplica à Virgem Maria: “Valha-me o teu poder e amor materno;/guia este cego, arranca-me da estrada/que vai parar ao tenebroso inferno.” E, numa espécie de ato de contrição poético, ele começa “Já Bocage não sou! À cova escura/Meu estro vai parar desfeito em vento...” E termina “(...) Se me creste, gente ímpia,/rasga meus versos, crê na eternidade.”

Continuamos crendo na eternidade, caro Bocage. Quanto a rasgar seus versos, jamais, pois não deixa de ser sacrilégio destruir a obra de um gênio.