Luzilá abre caminho próprio com muito além do corpo, ficção sofisticada de alta qualidade técnica

Raimundo Carrero *
opiniao.pe@dabr.com.br

Publicação: 04/07/2016 03:00

Luzilá Gonçalves Ferreira, que nunca esteve ligada a movimentos ou escolas literárias, numa região marcada por dois dos mais importantes movimentos culturais do país, o regional e o armorial, sem falar na estética político-social de Hermilo Borba Filho ou da estrutura cosmopolita de Osman Lins, enriqueceu a nossa ficção com Muito além do corpo, romance ligado ao universo feminino, revelando uma obra reflexiva em torno do amor, embora sua maior qualidade esteja ligada ao apuro técnico, um artesanato de alta qualidade, elaborado e uma linguagem sensível, delicada, amorosa.

Em princípio, a narrativa é realizada num amplo monólogo interior mas também numa sutil confissão – carta ao amado ou ao corpo idealizado? Por isso é que, em sua maioria, é escrita em terceira pessoa e, imediatamente, numa referência rápida, rapidísima, vai para a segunda pessoa, num jugo sutilíssimo de linguagem, de um hábil domínio de linguagem. Basta o seguinte exemplo:

“Era verdade. Ombros e quadris se equivaliam, as pernas curtas, um pouco de ventre que me comoveu: o tempo começava a trabalhar naquele corpo que eu amava, no abandono do sono. E sabia de cor aquele corpo, cada sinal de pele, que possuías esplêndida, de uma tonalidade perene qe me eram espanto e maravilha”.

Observe: todo o texto é escrito claramente em terceira pessoa mas, numa curva narrativa, aparece a segunda pessoa – que possuías esplêndida – e logo retorna à terceira pessoa Na página seguinte, a sutileza desaparece e a segunda pessoa é objetiva: “Havia algo além daquele corpo, que o ultrapassava e lhe dava um sentido que tu mesmo ignoravas. E eu: apenas pressentia”.

Assim, o monólogo interior some para dar lugar à confissão ou carta agora de forma muito objetiva e eloquente, uma conquista técnica bem realizada. Sem dúvida.

Dessa forma, o crítico ou o leitor atento - o leitor inteligente de que falam os formalistas russos - vai descobrindo, pouco a pouco, a riqueza técnica que transforma este romance em obra-prima da ficção pernambucana nesse século de ouro da nossa prosa. Mas não é só isso, teremos ainda algumas técnicas, que passaremos a examinar detalhadamente no próximo artigo.

* Escritor e jornalista