Urariano Mota
Escritor
Publicação: 16/07/2016 03:00
É de uma tristeza irônica, mas verdadeira. Na semana dos 26 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, discute-se no Senado uma Proposta de Emenda Constitucional de redução da maioridade penal. O que significa esse trem de substantivos juntos? Isto: no aniversário da lei que abrigava o jovem e criança como pessoa humana, ocorre a discussão de se devemos prender mais cedo os pequenos infratores. Ou, quem sabe, fazê-los sumir de vez, como aliás já é feito com meninos de 10 anos executados.
Qual seria o limite da redução penal? 12 anos, 11 anos, 10, 9, 8, 7 anos? Bebês? Qual o limite? Sintam que a cada redução devem ocorrer novos crimes que estarão no limite da punibilidade. Mais: com o necessário aumento da população carcerária, que já é um inferno e um fracasso do sistema, não estaríamos dando ótimas escolas do crime aos meninos?
Já imagino que os reformadores das conquistas sociais, criativos, podem argumentar que teríamos alas de criminosos de 16, outra de 15, mais outra de 14, até atingir um berçário… mas tudo dentro das mais perfeitas condições de higiene e cura da perversão. Diante do crime que ameaça e atinge a própria casa, já existe quem declare pérolas do gênero “sou de opinião que não deveria haver nenhuma idade mínima na lei”. Salve, daí partiremos fácil, fácil para a pena de morte aplicada aos diabinhos mais precoces. Agora, de um ponto de vista legal, sem teatrinho de resistência à prisão.
Enquanto isso, não vemos ou fingimos não ver a exclusão social e humana que cobre as cidades. Comemos, bebemos, vestimos, vamos aos shoppings sem olhar para os lados. E depois nos surpreendemos o quanto o mundo pode ser cruel quando atinge a estabilidade - porque nos julgamos estáveis em chão sólido -, ou a estabilidade sagrada - por tudo quanto mais é santo e elevado acima da animalidade dos outros, que não somos nós mesmos - a estabilidade sagrada dos nossos lares - pois somos aqueles que temos casa, enquanto os outros, ah, eles dormem na rua, que casa podem ter? Seria até uma questão de justiça, nós, os humanos, temos que destruir e tirar dos olhos a mancha da escória.
Por experiência, sei como anda a opinião pública intoxicada de ódio e terror. Em um programa de direitos humanos no rádio, o Violência Zero, eu, Rui Sarinho e Marco Albertim travamos com travo esse conhecimento. No estúdio da Rádio Tamandaré, no fim dos anos 1980, sentíamos a disputa de ideias na sociedade do Recife entre punir sem medida e o direito à justiça. Ainda que sem método científico, pelos telefonemas dos ouvintes, notávamos que a divisão entre os mais bárbaros e civilizados era quase meio a meio. O que houve agora para esse crescimento de retaliação?
Naquele tempo do Violência Zero no rádio, não sofríamos o massacre de imagens repetidas na televisão, nem estávamos num momento de crescimento da direita no Congresso. Havíamos saído de uma ditadura, mas a dominação não vinha dos deputados e senadores mais afoitos contra os direitos humanos. Antes, as insinuações do “só vai matando” ficavam restritas aos guetos dos programas policiais.
Lembro que uma vez perguntei a idade a um menino que cheirava cola nas ruas do Recife. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras de classe média: “Vai fazer, ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que não havia sido entendido. “Você faz anos em que mês?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:
- Tio, eu não tenho aniversário.
E fugiu pela Rua da Aurora, em frente ao Cinema São Luiz, com a sua garrafinha de cola e verdade.
Qual seria o limite da redução penal? 12 anos, 11 anos, 10, 9, 8, 7 anos? Bebês? Qual o limite? Sintam que a cada redução devem ocorrer novos crimes que estarão no limite da punibilidade. Mais: com o necessário aumento da população carcerária, que já é um inferno e um fracasso do sistema, não estaríamos dando ótimas escolas do crime aos meninos?
Já imagino que os reformadores das conquistas sociais, criativos, podem argumentar que teríamos alas de criminosos de 16, outra de 15, mais outra de 14, até atingir um berçário… mas tudo dentro das mais perfeitas condições de higiene e cura da perversão. Diante do crime que ameaça e atinge a própria casa, já existe quem declare pérolas do gênero “sou de opinião que não deveria haver nenhuma idade mínima na lei”. Salve, daí partiremos fácil, fácil para a pena de morte aplicada aos diabinhos mais precoces. Agora, de um ponto de vista legal, sem teatrinho de resistência à prisão.
Enquanto isso, não vemos ou fingimos não ver a exclusão social e humana que cobre as cidades. Comemos, bebemos, vestimos, vamos aos shoppings sem olhar para os lados. E depois nos surpreendemos o quanto o mundo pode ser cruel quando atinge a estabilidade - porque nos julgamos estáveis em chão sólido -, ou a estabilidade sagrada - por tudo quanto mais é santo e elevado acima da animalidade dos outros, que não somos nós mesmos - a estabilidade sagrada dos nossos lares - pois somos aqueles que temos casa, enquanto os outros, ah, eles dormem na rua, que casa podem ter? Seria até uma questão de justiça, nós, os humanos, temos que destruir e tirar dos olhos a mancha da escória.
Por experiência, sei como anda a opinião pública intoxicada de ódio e terror. Em um programa de direitos humanos no rádio, o Violência Zero, eu, Rui Sarinho e Marco Albertim travamos com travo esse conhecimento. No estúdio da Rádio Tamandaré, no fim dos anos 1980, sentíamos a disputa de ideias na sociedade do Recife entre punir sem medida e o direito à justiça. Ainda que sem método científico, pelos telefonemas dos ouvintes, notávamos que a divisão entre os mais bárbaros e civilizados era quase meio a meio. O que houve agora para esse crescimento de retaliação?
Naquele tempo do Violência Zero no rádio, não sofríamos o massacre de imagens repetidas na televisão, nem estávamos num momento de crescimento da direita no Congresso. Havíamos saído de uma ditadura, mas a dominação não vinha dos deputados e senadores mais afoitos contra os direitos humanos. Antes, as insinuações do “só vai matando” ficavam restritas aos guetos dos programas policiais.
Lembro que uma vez perguntei a idade a um menino que cheirava cola nas ruas do Recife. “Onze anos”, ele me respondeu. E eu, com minhas exatidões burras de classe média: “Vai fazer, ou já fez?”. Silêncio. Eu insisti, crente de que não havia sido entendido. “Você faz anos em que mês?”. Então ele me ensinou, antes de correr até a esquina:
- Tio, eu não tenho aniversário.
E fugiu pela Rua da Aurora, em frente ao Cinema São Luiz, com a sua garrafinha de cola e verdade.