Devolvam meu São João

Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Publicação: 24/06/2017 03:00

Em toda minha vida, só passei o São João fora de Pernambuco quando estudava o curso secundário em Nova Friburgo (RJ) e ao fazer pós-graduação, primeiro, no Rio e, em seguida, nos Estados Unidos. Foram 10 festas “perdidas” em 75. Na minha primeira ausência, em 1952, no meu colégio, e na cidade onde ele ficava, celebrava-se Santo Antônio (no dia 12, a véspera); o São João era ignorado. As comidas não incluíam nada de milho, exceto mungunzá branco, chamado de “canjica”. Havia fogueira, batata doce nela assada, quentão, bolos. E também quadrilha; só que da versão brasileira autêntica, divertida, espontânea, não ensaiada, sem as tolices e exageros das estilizadas, sem concursos idiotas, sem coreografias estereotipadas. Longe daqui, eu sentia enorme falta das nossas coisas tradicionais – milho cozido e assado, canjica (a nossa), pamonha, pé-de-moleque, bolo de macaxeira, forró com sanfona, zabumba e triângulo.

Essa tradição foi incorporada de forma natural às comemorações de minha propriedade, no brejo de altitude de Gravatá, desde que a adquiri em 1976. Nos quatro primeiros anos, sequer tínhamos luz elétrica. Mas sanfoneiro, milho e o quentão que faço estavam aí presentes. A festa era para a vizinhança toda. Assim, desde 18h do dia 23 até o amanhecer do dia 24, a animação não parava, com gente dançando o tempo todo – normalmente, umas 80-100 pessoas. De 1980 em diante, com a luz elétrica, não mudou nada. Só que, a partir de 2005, o pessoal jovem e as mulheres começaram a escassear. Saíam do lugar para os megashows na cidade de Gravatá, badalados intensamente pelos meios de comunicação. A frequência ficou sendo muito mais de homens que vinham para beber e sair bêbados, alguns arrastados. Em 2011, depois que a festa acabou (aí, já antecipávamos o encerramento para as 2h da manhã), houve um assassinato dentro da propriedade. Dois homens aparentados se desentenderam, o que estava despencando devido ao quentão que tomara em excesso terminou assassinado e jogado no meu açude. Já não havia mais ninguém acordado por ali, exceto os dois. E o assassino saiu da cena do crime direto para a delegacia da polícia da cidade, a pé, onde comunicou o que havia feito – e foi preso.

Com isso, cessaram os meus festejos abertos. Ficou só uma comemoração em família e para as pessoas mais próximas do lugar. Convivendo de perto com a comunidade, percebo como é forte a ligação das pessoas com o que o São João tem de mais tradicional entre nós. Os jovens, porém, têm tomado outro rumo – e não por uma mudança cultural suave. É tudo vítima de apelos comerciais, que também os fazem aceitar trabalhar no cultivo de flores, abundante ali, com uso intenso de venenos, dos quais muitas consequências funestas têm decorrido (incluindo cinco suicídios por ingestão de agrotóxicos líquidos de pessoas de menos de 30 anos de idade em 2016).

No ano passado, na feira de Gravatá, encontrei uma moça (bonita) tocando forró com sanfona, sentada na beira da entrada de um supermercado. Era a antevéspera do São João. Som muito agradável, da tradição de Luiz Gonzaga, e a menina, simples, cheia de adereços atuais (piercings, tatuagens, a roupa). Fiquei na plateia. Logo, um senhor de uns 60 anos me procurou e pediu uma colaboração para a sanfoneira. Dei 20 reais. Era o pai dela, também sanfoneiro, da tradição visceral do Nordeste, chamado Biu Galego. Conversamos. Simpatizei com a menina. Só que, até aquela altura, o único dinheiro que havia entrado para ela foi o que eu tinha dado. Uma verdadeira praticante da boa música, gente da terra, telúrica, mas completamente marginalizada – algo pelo qual têm passado nossos artistas, do incomparável Gonzagão a Petrúcio Amorim. Ora, de repente, a gente sabe que “artistas” invasores com baixíssimas credenciais de cultura recebem cachês de centenas de milhares de reais para “animar” festejos juninos da região. É incrível a insensibilidade de quem contribui para essa desigualdade de tratamento sem nenhuma razão de ser. Por que a filha de Biu Galego vai permanecer ignorada e essas duplas goianas, paulistas cafonas não param de faturar massas absurdas de dinheiro? Como disse no DP, no fim de semana passado, meu amigo Leonardo Dantas: “Esses rapazes do Centro-Oeste chegam aqui fantasiados de caubói, com chapéu do Texas e querem mandar na festa da gente e ainda serem pagos com dinheiro público”. Isso não é evolução cultural, e sim imposição de valores, colonialismo. Não há como eu não me posicionar ao lado de Leonardo, de Ariano Suassuna, Alceu Valença (cujo filme A Luneta do Tempo é um belíssimo manifesto regionalista), Elba Ramalho, Renato Phaelante, Maciel Melo, Santana, Alcymar Monteiro; do apresentador Sérgio Gusmão, meu amigo, cujo discurso é exemplar no assunto aqui tratado. Meu universo de São João é o mesmo de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Sivuca – uma herança de minha família, de minha educação, dos valores que o Nordeste encerra.