Preço do atraso

Clóvis Cavalcanti
Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Publicação: 22/07/2017 03:00

A propósito de meu artigo nesta página do DP da edição de 8-9 de julho corrente,  “Indecência política e desgraça social”, recebi comentários que muito me sensibilizaram. Um deles, do meu amigo e destacado botânico José Alves de Siqueira, professor da Univasf. Escreveu ele: “seu texto me inspirou na ocasião em que rodamos quase 1.000 km pra ver de perto a 40ª Romaria da Terra e das Águas, em Bom Jesus da Lapa, nas margens do combalido Rio São Francisco, no interior da Bahia [...] As histórias do agronegócio com seus pivôs de irrigação que sugam milhões de litros de água diariamente e já comprometeram 54% da água do Rio das Éguas, mais conhecido como Rio Corrente, num show de desperdício de água em terras griladas dos povos tradicionais.  O peixe que se come aqui é o tambaqui de criatório, algo semelhante a se comer galinha de granja nos sítios e engenhos da zona da mata pernambucana [...] Aproveitamos [...] para perambular pelas casas e sítios na zona rural de Santa Maria da Vitória pra conversar com o povo.
Ainda se toma cachaça brejeira e café bem adoçado. Histórias de vida e de uma natureza farta no passado”.

Esse relato autêntico e pungente retrata bem a realidade de um Brasil no qual o bem-estar humano é a última coisa que efetivamente preocupa a quem tem poder. Por que empresas do agronegócio podem tirar um recurso que pertence a todos, como a água, para gerar lucros fabulosos que tornam cada vez mais ricos e poderosos, grupos que não medem o mal que estão fazendo a populações simples e esquecidas da sociedade brasileira? Na verdade, o agronegócio é um setor da economia brasileira que só parece contribuir para a felicidade nacional. É assim, com efeito, que se exalta com enorme frequência a suposta contribuição que ele oferece para que a economia brasileira cresça. Sim, a grande agricultura comercial do país ajuda o PIB a crescer. Porém, faz isso a um tremendo custo ambiental e humano que é simplesmente ignorado. As empresas de porte considerável que atuam no segmento agropecuário brasileiro dizimam biodiversidade, desperdiçam água, expulsam populações campesinas, envenenam o meio ambiente. No entanto são exaltadas porque ajudam o PIB a crescer. Esse é um erro, inclusive econômico, pois a produção de bens e serviços gera receitas, por um lado, e despesas, por outro. A realidade do PIB, contudo, é a de só contabilizar ganhos. Celso Furtado (1920-2004) classifica-o de “vaca sagrada dos economistas”. Dos economistas e de todos os que adotam suas “verdades”.

O fato é que se dá importância demasiada ao aumento da economia, fazendo de conta que isso não causa dor, mal-estar, sofrimento. Escrevo de Belo Horizonte, da 69ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Aqui está sendo apresentado um livro, de grupo de trabalho da SBPC, liderado pela respeitada antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, que segue rigorosos métodos e critérios da ciência, com o título A Expulsão de Ribeirinhos em Belo Monte. O que ele tem em mira é expor histórias, reflexões e propostas com o objetivo de sensibilizar a sociedade e os poderes públicos de modo que se restituam aos ribeirinhos do Rio Xingu as condições de que desfrutavam antes da construção da Usina de Belo Monte – condições que eram de uma vida satisfatória, sem degradação ambiental, exatamente o oposto do que se vai proporcionar agora a populações que, durante séculos, nenhum mal causaram a ninguém. Seria aceitável dizer que isso seja o preço do progresso? Claro que não. Porque, simplesmente não se pode considerar progresso uma transformação que penaliza tanta gente, para que minorias privilegiadas acumulem mais privilégios, esbanjando opulência e destruindo formas de vida sustentáveis que preexistiam. Conforme assinala o historiador ambiental, meu amigo José Augusto de Pádua (professor da UFRJ), nos primórdios do século XIX já havia a percepção de que a destruição do meio ambiente natural não era o “preço do progresso”. José Bonifácio (1763–1838), em 1823, pelo contrário, taxava-a de “preço do atraso”. A destruição da Mata Atlântica, por exemplo, se pode considerar como fruto do atraso e da ignorância. Nossa sociedade não merece que a história se repita.