Bioética e doação de gametas

Josimário Silva
Presidente do Instituto Pernambucano de Bioética e Biodireito

Publicação: 22/09/2017 03:00

Em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) RE 898060, por 8 votos a 2, em recurso que declarou a repercussão geral da matéria, reconheceu a existência simultânea da filiação socioafetiva e biológica, ou seja, reconheceu a existência da multiparentalidade, o que é louvável, contudo, decidiu que a filiação biológica é preponderante em relação à filiação socioafetiva. No caso concreto, uma adolescente de 16 anos, ao saber da existência de um pai biológico, diferente do até então pai socioafetivo e registral, decidiu mover ação com o propósito de reconhecimento desta paternidade. O pai biológico se opôs à pretensão da menina, sustentando que ela já possuía um pai registral e socioafetivo e este ostentava a posse do estado de filho, inviabilizando a pretensão de estabelecer a filiação e suas consequências.

Diante dessa decisão se abre um precedente extremamente sério. Como ficarão os casos de fertilização heteróloga (in vitro) por deficiência ou ausência de gametas (óvulos e espermatozoides) em que o casal tenha que buscar a doação de gametas? O doador de gametas deve ser juridicamente responsável pela a criança gerada? A doação pode gerar os efeitos da filiação, como direitos sucessórios ou pretensões aos alimentos?

Estamos diante de um problema de ordem moral e um problema bioético. Desde o nascimento de Louise Brown, o primeiro “bebê-de-proveta”, em 1978, a técnica de reprodução humana teve vários desdobramentos e hoje, em muitos países, é utilizada doação de material genético, criopreservação de embriões, diagnóstico genético pré-implantacional, e doação temporária de útero. A doação de gametas pode ser utilizada quando há ausência de formação de gametas, tanto por parte do homem (azoospermia) quanto da mulher (falência ovariana). Outra situação para emprego de doação de gametas é evitar o risco de transmissão de doenças genéticas.

As questões bioéticas em relação à doação de gametas envolvem a introdução de um terceiro elemento na relação conjugal (o doador), a forma como os gametas são obtidos (pagamento ou não-pagamento do doador), a questão do anonimato ou não, os possíveis danos psicológicos dessas crianças e o risco de consanguinidade. O anonimato baseia-se no fato de que todo ser humano tem direito de conhecer sua origem biológica. Em alguns países o anonimato não é obrigatório, como a Austrália, por exemplo, e em outros, como a França, quando completar 18 anos, o indivíduo passa a ter o direito de conhecer o pai ou mãe biológicos, se assim o desejar. Porém, nem todas as crianças são informadas pelos pais de que foram originadas por reprodução assistida através de uso de gameta de doador. Mas a pergunta é: cabe ao doador toda a responsabilidade sobre o material doado? E se couber, o efeito é Erga omenes?

A decisão do STF abre uma discussão bioética importante e é necessário prudência ao tratar essa situação pois isso naturalmente vai repercutir diretamente nas questões de família e patrimonial, no desejo à maternidade e paternidade responsável. Doação é altruísmo, voluntariedade, solidariedade. A discussão bioética está posta....