Um novo Dadaísmo é possível? Rússia x Ucrânia & Bar Savoy

Marcus Prado
Jornalista

Publicação: 27/04/2022 03:00

Nessa hora de um conflito estarrecedor entre duas nações do Leste Europeu, Rússia e Ucrânia, que está sendo visto, por suas atrocidades, como referência desastrosa das mudanças mais significativas na ordem geopolítica mundial desde o 11 de setembro, é possível sentir falta de um movimento de rebeldia intelectual e artística em favor da paz, como o Dadaísmo?

Mesmo que haja um novo conflito, além do que está toda hora no noticiário internacional, e dele já sentimos o cheiro solto no ar, tenho para mim que o Dadaísmo virou peça de museu, tornou-se uma relíquia pelo legado dos seus propósitos, a partir do seu Manifesto, de 1918, assinado por Tristan Tzara, que é, no gênero, de suprema importância como documento histórico, tema ainda hoje do Enem e vestibulares.  Dadá ficaria na história da arte e dos movimentos de contestação intelectual, não há mais como ressurgir nesta era de raros intelectuais e artistas engajados nas grandes causas da humanidade, rebeldes, ousados, audaciosos, sem reticência. A Europa tomou conhecimento do grito Dadá, numa Suíça tradicionalmente neutra, e por ser neutra, era acolhedora dos rebeldes, dos que deram “adeus às armas” sem delas nunca terem feito uso. A história das Guerras também se conta por aqueles que fugiram dela.

Estive duas vezes, anos seguidos, e pretendo voltar, no berço do Dadaísmo, à Rua Spiegelgasse 1, em Zurich, nos Alpes Suíços, no ambiente do Cabaret Voltaire, na parte antiga de uma das mais belas cidades da Europa. Zurich, com o Dadá, se tornaria, durante o primeiro conflito mundial, na vanguarda dos intelectuais e artistas de contestação. Foi neste clima de tremendas expectativas e incertezas, durante o primeiro maior conflito mundial, que nasceu o Dadaísmo, em 5 de fevereiro de 1916, poucos dias antes da encarniçada Batalha de Verdun, com a finalidade de erigir uma paz verdadeira e fecunda.  

Os Dadaístas eram todos anarquistas no bom sentido; anarquistas  geniais,  celebrados no mundo inteiro como artistas de vanguarda, desesperadamente de vanguarda e do absurdo, a começar  pelo alemão Hugo Ball, (1886-1927), Pirmasens, Alemanha, ao lado do francês Marcel Duchamp, (1887 – 1968), Hans Arp, (1886 – 1966), Estrasburgo, França;  Raoul Hausmann, (1886 – 1971), Viena, Áustria; Francis Picabia, (1879 – 1953), Paris, França; Max Ernst, (1891 – 1976), Brühl, Alemanha; Man Ray, (1890 – 1976), Filadélfia, Pensilvânia, EUA. Sem falar de Samuel Rosenstock, mais conhecido pelo pseudônimo de Tristan Tzara, (1896-1963) para mim o menos ousado e mais criativo do grupo, um dos precursores do movimento, importante poeta romeno-francês do século 20.  Foi também dramaturgo, diretor de cinema, crítico literário e de arte e jornalista.

O lema Dadaísta, em síntese, era a irreverência artística contra a corrida armamentista, com o uso de objetos do cotidiano, sons, fotografias, poesias, músicas, jornais, etc., na composição das obras de artes plásticas, tudo contra a guerra, quando nuvens de fumaça subiam em turbilhão das ruínas das casas destruídas, edifícios, vidas.  

Falta, nesta hora da Rússia e da Ucrânia, um novo Dadá, um novo Dadaísmo, mas encabeçado por quem? Em que lugar? Cada “ismo” sempre teve o seu tempo, o contexto histórico do Dadaísmo foi a Primeira Guerra Mundial.

No Brasil, raros, foram os Dadaístas, como o poeta pernambucano Manuel Bandeira e o paulista Mário de Andrade. No Recife, muitos anos depois da Primeira Guerra Mundial, o ambiente que mais encarnava o espírito Dadaísta, para mim, foi o Bar Savoy, fundado em 1944, do “bom Esteves Pereira”, como o chamava Gilberto Freyre.  Parecia o Cabaret Voltaire, com suas exposições de arte, suas irreverências, suas declamações de poesias, seus concursos literários. O Savoy dividia-se em dois. O de Gilberto Freyre, Lula Cardoso Ayres, Capiba, Ascenso Ferreira, Mauro Mota, Carlos Pena Filho, Ladjane, Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Abelardo da Hora, Francisco Brennand, João Cabral, Alberto da Cunha Melo, Liêdo Maranhão, Vicente do Rego Monteiro, Audálio Alves, Paulo Cavalcanti, Pelópidas Soares, Edmir Domingues, Tomás Seixas, Jacy Bezerra, Maximiano Campos, Tereza Tenório, Edmund Dansot, Altamiro Cunha, Selênio Homem de Siqueira,  Geneton Moraes Neto, Orley Mesquita, Sérgio Moacir de Albuquerque, Raimundo Carrero, Mário Hélio, Jodeval Duarte,  José Mário Rodrigues, Marco Polo, Jomard Muniz de Brito, Ângelo Monteiro, Domingos Alexandre, Tarcísio Bocão, Leonardo Dantas, Ricardo Noblat, Edilberto Coutinho, Urariano Mota, os dois últimos, biógrafos do Savoy.

O outro foi o Savoy do Recanto dos Poetas, onde os jovens artistas rebeldes da nova geração pernambucana não só bebiam Chopp, mas conspiravam quixotescamente contra os alicerces do golpe militar de 64.

Surpreende a semelhança do centro urbano do Recife com a arquitetura centenária de Zurich. O Rio Capibaribe teria uma boa convivência com a natureza do Rio Limmat, que corta a cidade. Eles tiveram o Cabaret Voltaire, nós tivemos o Bar Savoy.