Caboclinhos: entre a brincadeira de carnaval, o resgate dos antepassados e a ligação com a religiosidade

Alexandre Acioli
Jornalista

Publicação: 17/02/2025 03:00

Nem só de frevo e maracatu vive o carnaval de Pernambuco. Há outras tantas manifestações e brincadeiras que, infelizmente, são pouco notadas ou não se incluem no rol de preferências dos foliões. Os caboclinhos estão entre os primos pobres da folia de Momo. É uma das manifestações mais antigas do carnaval pernambucano e reconhecida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2016, como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.

Originários das lembranças de tradições religiosas, como a Jurema Sagrada e o Toré, o primeiro registro dos caboclinhos no carnaval é de 1892, com matéria publicada na edição de 28 de fevereiro, no Jornal do Recife. No início do século 20, de acordo com o pesquisador Leonardo Dantas Silva (1945–2023), a brincadeira era denominada de “Caboclinhos da Jurema”, conforme registros nas edições do Jornal do Recife, de 15 de fevereiro de 1901; 9 de fevereiro de 1902 e 19 de fevereiro de 1903.

As agremiações mais antigas e ainda em atividades são a Tribo Carijós do Recife (1896), a Tribo Canindé do Recife (1897) e os Caboclos Cahetés de Goiana (1904), todos eleitos e reconhecidos Patrimônios Vivos de Pernambuco (Lei nº 12.196/2002).

Esses e outros grupos simbolizam o resgate da memória, da cultura e da resistência das populações indígenas e de povos africanos escravizados, sobretudo no Nordeste brasileiro. As suas danças e músicas resgatam narrativas de antigos guerreiros e uma ligação forte com as religiões de matriz indígena e afro-indígena, ancorada principalmente no culto à Jurema Sagrada e reverência a entidades espirituais chamadas de “Caboclos”.

A Cartilha do Carnaval (FCCR, 2010, p. 69) deixa clara a presença da religião nos grupos de caboclinhos, por intermédio de cultos indígenas. “É na Jurema (...) onde atua a maioria dos mestres e caboclos”, embora algumas agremiações cultuem “religiões afro-brasileiras, ligadas a terreiros de Xangô e Umbanda”. Numa matéria publicada em 25 de janeiro de 1997, neste Diario de Pernambuco, o fundador do Caboclinhos 7 Flexas (1969), mestre Zé Alfaiate (1920-2016), afirmou: “Caboclinhos e terreiros de Umbanda são praticamente uma coisa só. Tudo tem caboclo no meio”.

Mas a brincadeira, como funciona?

Os desfiles dos caboclinhos têm em comum o ritmo frenético dos brincantes ao som do caracaxá e o estalido das preacas. Nos seus estudos sobre manifestações populares, o maestro Guerra Peixe (1914-1993) afirmava que a dança dos Caboclinhos é “uma das mais simpáticas”. As manobras (nunca chamadas de coreografias) representam principalmente lutas dos antepassados. “O bailado é o da luta entre os caboclos da tribo e seus contrários”, explica uma publicação da Tribo Canindé (2009). Então, se é a representação de uma batalha contra os inimigos, faz mais sentido usar a palavra manobra, “em alusão a manobras de guerra, onde cada uma delas sugere momentos de ataque, defesa ou recuo”.

Nas apresentações, os grupos formados por homens e mulheres (caboclos e caboclas) saem enfileirados em duas colunas. Os outros personagens são o porta-estandarte; o guia e o gontra-guia, que puxam os cordões e os movimentos. No centro estão o rei (cacique), responsável pelas manobras; a rainha (cacica ou mãe da tribo), o pajé, os perós (curumins), os caçadores e os caboclos do baque ou tocadores (músicos).

O baque é a denominação dada ao conjunto de músicos, formado tradicionalmente pelos tocadores de tarol, de caracaxá e de gaita. “É o baque, responsável pela execução dos toques e é um dos puxantes que determina a mudança de toque, que são a guerra, o perré, o baião e o toré (ou macumba)”. Outros grupos também apresentam o traidor (ritmo marcado pelas preacas), a emboscada (disputa de dois grupos) e aldeia (dança em círculo).

Então, agora já entendemos minimamente a tradição centenária dos caboclinhos, que integram um significativo conjunto de formas de expressão características da multiculturalidade pernambucana. As manobras são verdadeiros autos dramáticos de resgates de vivências do passado e representam um compromisso de fé com a espiritualidade. Não é apenas uma brincadeira de carnaval.