O Sítio dos Valença

Aldo Paes Barreto
Jornalista

Publicação: 28/02/2025 03:00

Ali onde a Rua José Osório encontra a Avenida Caxangá, na Zona Oeste do Recife, havia um sítio onde se plantava música, poesia e cultivava-se antigas tradições cristãs. Era o Sítio dos Irmãos Valença de onde exalava um cheiro bom de terra molhada, de mangas maduras, de sapotis espalhados pelo chão. Pintos e galinhas ciscavam a terra provocando os únicos sons dissonantes. A sensação de paz estava em todo canto. No casarão, nas paredes, nas salas onde os irmãos Raul e João ensinavam piano, violão, e compunham as mais líricas modinhas, canções que seriam cantadas nos carnavais de Pernambuco.

Quando dezembro chegava a programação festiva do Natal embalava o sítio. Os Valença apresentavam o Pastoril, ensaiado e alternado com peças teatrais ao longo do ano. Vinha a queima da Lapinha, outra tradição dos católicos instalada há mais de cem anos no casarão da família. No início do novo ano, os irmãos anunciavam com entusiasmo a chegada do carnaval. Era uma contribuição cheia de lirismo, de ternuras e de encantamentos, plena de alegria e sonhos transformados na magia dos passos da nossa música alucinante: o frevo.

Eles recolhiam as partituras escritas ao longo do ano e saiam em busca de casas editoras, levando aos programadores da única emissora de rádio da época, a Rádio Clube de Pernambuco, o trabalho impresso em partituras, apoiado no som do violão. “Eu tive um sonho que durou três dias/ Foi um sonho lindo e encantador... “, talvez a mais bela canção já composta para o carnaval. Quem lembra da música e dos autores, os Irmãos Valença? Eles são mais evocados pela composição menor, jocosa, enviada para a RCA Victor, no Rio de Janeiro, no início dos anos 1930, para ser gravada. A música caiu nas mãos e nas graças do compositor Lamartine Babo, que fez adaptação carioca e ganhou alcance nacional: “O teu cabelo não nega, mulata...”

O sucesso da marchinha só encontrou comparação na celeuma que se formou. Quem foram os autores? Os Valença e Babo, dividiram a autoria e a marchinha foi e ainda é sucesso. Logo depois, enfrentavam outra arenga. Era racista. Sociólogos, musicistas de gabinete e oportunólogos de todos matizes, identificaram o mais debochado racismo na composição e acharam provas irrefutáveis do machismo pernambucano. A medriocridade premiada se aliava à ousadia barulhenta e venceriam mais um round contra a música brasileira. Racismo? Quem trocar a expressão “mulata” por “lourinha”, vai ver que nada muda, nem tem nada de racismo. Nem mesmo compromete a exigida métrica. Com vantagem adicional: poderia estimular algum gênio da propaganda a vender cerveja. É só alterar a letra, trocar mulata por lourinha e filmar algum ávido consumidor retirando uma “lourinha’ do refrigerador.

Estupidamente gelada. Em todos os sentidos.