Entre a glória e o pesadelo
Transitamos entre o glamour da Copa e uma certeza: trilhos que aproximam da Arena são os mesmos
que levam ao clima da tolerância zero
luce Pereira
lucepereira.pe@dabr.com.br
Publicação: 08/05/2014 03:00
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Enquanto uma infinidade de aparelhos de televisão, país afora, era ligada para ouvir o técnico anunciando seus 23 “gladiadores”, os canais locais cobriam outro cenário para o qual o país já não tem a menor paciência. Protesto – e daqueles que terminam sempre com a área de segurança do estado repetindo a mesma frase: não houve excesso por parte da polícia. Aqui, ela foi pronunciada pelo major da PM Cleidson Canel.
Quase que o número da sorte de Felipão, no dia de ontem (23), era o que deflagrou por aqui a diferença entre as duas realidades. Por o intervalo entre as viagens ter subido de doze para 25 minutos, os usuários se sentiram como aquele povo que lotou o Maracanã na final da Copa do Mundo de 1950, para ver o Uruguai levar pra casa a taça mais cobiçada pelo Brasil – frustrados. Só que em lugar do silêncio que se seguiu à frustração de ver o uruguaio Ghiggia tirar o doce da nossa boca, no metrô de Camaragibe ouviram-se sons de bombas de efeito moral, de balas de borracha, dos coturnos naquela batida grave e ritmada
Se em 1950 existissem redes sociais e tantos motivos para protestar, talvez o entorno do Maraca também virasse praça de guerra. Mas estamos em 2014, a trinta e cinco dias do tão esperado Mundial em casa, e este perigo se mostra tão real quanto foi o famigerado gol da Celeste. Na confusão, iniciada por um problema que limitou o número de viagens e dobrou o tempo de espera, até geladeira foi atirada nos trilhos, o que acabou por interromper de vez a operação dos trens.
A propósito, a violência é comum a todas as manifestações em qualquer canto do Brasil, mas seja reunindo multidões ou menos de cinco pessoas, aqui elas têm uma peculiaridade – as armas escolhidas pela população estão à venda em lojas de material de construção e de eletrodomésticos. Para se vingar barbaramente da torcida do Sport Club do Recife, torcedores do Santa Cruz (um identificado) atiraram bacias sanitárias de cima do estádio do Arruda e mataram um jovem. Agora, enfurecidos com a inesperada demora, usuários do metrô de Camaragibe atiraram o segundo objeto mais desejado em jogos de futubol (o primeiro é a tv, claro), porque tem a tarefa de deixar “no ponto” a bebida mais apreciada pelas torcidas, até prova em contrário.
Tristes coincidências e peculiaridades acabam se juntando para mostrar não apenas que Gilberto Gil está certo quando lamenta o mundo ser tão desigual, como as ameaças pousadas sobre o espetáculo feito uma nuvem com jeito de mata-borrão. Elas são verdadeiras, porque a tolerância a tanto desajuste social está caindo a zero, ou seja, isto traduzido para uma linguagem buarqueana ficaria assim: “Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa”.
Mas com mágoa ou não, completamente despreparados ou pouco preparados, nos candidatamos a subir a lona e fazer o espetáculo. Agora ele está à porta e a gente ainda decidindo se vai transformá-lo em circo, comédia ou tragédia. Reconheçamos que o bendito amadorismo nos persegue com a obstinação de uma sombra, porém não há como recetroceder – e se a sabedoria popular merece ser levada em conta, lembremos que “barco perdido, bem carregado”. É tirar da festa o maior proveito, porque, pelo nível de desgaste entre os envolvidos no desafio, esta geração não verá mais outra Copa do Mundo no país.