O Sol do Terrível Ariano foi quase um estandarte das tradições e riquezas culturais de Pernambuco, pelas quais lutou até a última entrevista, a última aula-espetáculo

Luce Pereira
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Publicação: 24/07/2014 03:00

Monteiro Lobato chamou a morte de a magra, em fábulas que escreveu, porém se surpreenderia com o apetite dela, nos tempos de hoje, sobretudo para levar anjos da literatura nacional. Em menos de uma semana, fartou-se tirando dos brasileiros os grandes João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves e Ariano Suassuna. Todos generosos no legado, todos únicos no estilo e na arte de prescrutar os sentimentos do mundo, grandezas e misérias da condição humana.

Mas, sim, e por todas as razões, a “viagem” de Ariano dói mais fundo. Além de ter tomado o Recife como pátria, desde 1944, foi o mais pernambucano entre os que vieram de outras terras. Foi quase um estandarte das tradições e riquezas culturais de Pernambuco, pelas quais lutou até a última entrevista, a última aula-espetáculo, a última letra impressa na vasta obra, que fala múltiplas linguagens.

De enredo de escola de samba carioca a tema de mestrados e nome de residencial, o escritor recebeu toda a sorte de homenagens, ao longo da vitoriosa carreira, mas nada superava a alegria de ser conhecido não apenas pela nata da intelectualidade brasileira mas, também, por gente que não chegou a ler nem mesmo a “orelha” de um dos seus livros. Seja através deles, da televisão ou das palestras, construía uma identidade – quase cumplicidade – com a cultura popular, que praticamente considerava o “RG” dos nordestinos. Uma cultura viva, com nome e sobrenome, razão pela qual viveu numa eterna trincheira de combate àquilo que chegava para confundi-la, ignorá-la ou contaminá-la.

E esta paixão estava clara no rigor que exigia para a montagem e adapatação de qualquer um dos rebentos literários ou teatrais. Não se descuidava de um quase dever de preservar a fonte na qual bebiam personagens e estilo, para não deixar dúvidas sobre suas crenças e o sotaque delas. A respeito disto, simplesmente não fazia concessões, como não fazia a emprestar sua obra àquilo que considerava servir aos interesses de grandes grupos. Daí ter recusado indicações para os prêmios Shell e Sharp, além de não querer conversa com a Bienal Nestlé de Literatura. Falava que não precisaria se submeter a tal desconforto.

E quem disse que “o chão de diamantes” em que se transformou sua trajetória o impediria de se comportar como um reles e espontâneo mortal? Há bem pouco, tinha sido visto dormindo no chão do aeroporto de Brasília, depois de cumprir compromissos profissionais e enquanto aguardava o avião de volta para casa. Era o mesmo Ariano que, nas aulas-espetáculo, deixava fluir o menino da paraibana Taperoá, onde viveu e abriu a alma para permitir entrar o Sertão com todo o seu misticismo e beleza. O Sertão que o ensinava a também se referir à morte com outro nome – Caetana.

Ele teria medo de enfrentá-la? Disse que não, somente “pena” de ir-se sem terminar um romance iniciado há 34 anos, espécie de releitura de toda a obra. Há muito tempo já imaginava o encontro, traduzido assim no poema A Morte – O Sol do Terrível:
“Mas eu enfrentarei o Sol divino/,o Olhar sagrado em que a Pantera arde/ Saberei porque a teia do Destino/ não houve quem cortasse ou desatasse./ Não serei orgulhoso nem covarde,/que o sangue se rebela ao toque e ao Sino./Verei feita em topázio a luz da Tarde,/pedra do Sono e cetro do Assassino./ Ela virá, Mulher, afiando as asas,/com os dentes de cristal, feitos de brasas,/e há de sagrar-me a vista o Gavião./Mas sei, também, que só assim verei/ a coroa da Chama e Deus, meu Rei,/assentado em seu trono do Sertão”.

Hoje, entre os que gostam de literatura nobre, reina certo desgosto pelo ofício da Caetana, da magra, da morte. Ainda que ele iguale a todos e deixe sempre a esperança de um (improvável) reencontro.