Bom dia, Dorothi Aos 81 anos, pernambucanca vira universitária e engrossa números do Inep sobre aumento do ensino superior

Silvia Bessa
silviabessa.pe@dabr.com.br

Publicação: 26/09/2014 03:00

Depois da aposentadoria, Dorothi tentou pintura, costura, mas nada a atraiu. Somente a volta ao estudo (NANDO CHIAPPETTA)
Depois da aposentadoria, Dorothi tentou pintura, costura, mas nada a atraiu. Somente a volta ao estudo
Tenho muito respeito por quem passa dos 80. Ou pelas experiências, vividas ou sonhadas, dos que viveram mais de 80 anos. Minha admiração cresce ainda mais diante dos que tiveram a chance e, por opção, não se curvaram à inflexibilidade das intempéries e rugas - o que suponho ser dificílimo. Talvez por isso seja tão oxigenante conhecer ou ter notícia de pessoas como Dorothi, que passou longe da fila da resignação e fez bom uso de uma inquietude na medida exata para deixá-la feliz. “A minha vida nem é tão, tão…(pausa). Não tem muito o que se contar”, disse-me nesses dias. Falo de Dorothi Lira da Silva, 81 anos, estudante do 2º período do curso de Direito da Focca de Olinda. 

Escrevo porque acho que tem, minha cara Dorothi, afinal não é todo dia que uma estudante com dois cursos universitários concluídos (o de pedagogia e o de ciências) e mais uma especialização oferecida pela igreja católica (ensino religioso) ingressa num terceiro curso superior. “Cá entre nós, gostaria de ter feito jornalismo, mas tenho uma autocrítica tão alta que não conseguiria terminar um texto”, confidenciou ela, abrindo uma boa conversa.

Estava cansada neste dia, mas o entusiasmo com o qual falava da noite anterior merece aqui algumas linhas (ainda que esta repórter venha a ser criticada pela indiscrição): “Minha filha, é que dormi tarde para a apresentação da cadeira de economia política. Meu grupo pediu que eu estudasse Karl Marx. Me esforcei”, relatou, lamentando por não ter sido tão eficiente quando gostaria no seminário e ter repetido trechos do trabalho. “Foi, mas aprendi muito. Tinha uma doutora em oratória que falou antes de mim que é fantástica. Boa mesmo. Valeu”, comemorou, como se revertesse o saldo negativo em positivo. 

Ex-coordenadora e supervisora escolar, aposentada da Secretaria de Educação estadual em 1992 e do município de Palmares em 1996, ela voltou às aulas porque buscou de um tudo para se ocupar e nada a preenchia. Mudou-se para uma casa com quintal amplo rodeado de cajus, dedicou-se à pintura, reabriu a máquina de costuras para retomar prática antiga. “Não deu certo. Comecei e engordar, apesar de toda assistência de doutor Alexandre Matos, meu geriatra”. Dorothi resolveu, então, voltar ao seu ninho. Seria a décima a se formar em direito na família e queria ter esse prazer. “Fui aceita pela faculdade e entrei como portadora de diploma. É um entretenimento maravilhoso para mim”, definiu. Os amigos são um capítulo extra. “A faculdade é meu clube de campo. Lá, tenho muitos amigos”.

“Acredite você que caí no início do segundo período e muitos dos colegas me ligavam oferecendo cadernos, ajuda…”, perguntou-me, sabendo que eu acreditava, mas contando as novas amizades da mesma forma que as meninas de 20 anos relatam suas conquistas. É esse ânimo que faz com que ela saia todos os dias sozinha para pegar o ônibus coletivo antes das 8h. “Passo a transversal, subo no ônibus sozinha e gosto de ficar na frente. Desde que aprendi a dirigir resolvi que iria andar junto do motorista porque acho mais seguro”, conta ela, que às 11h30 acaba o expediente.
Claro, Dorothi é uma exceção quando se trata de ensino superior. Acredito, contudo, que cada vez mais teremos exceções, cidadãos ao nosso redor que entrem tardiamente no curso superior. Li há poucos dias uma pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas da Educação Superior, (Inep). Segundo ela, nos últimos dez anos o número de ingressantes em cursos de graduação teve um crescimento de 76%, sendo que 80% frequentaram cursos presenciais. A pesquisa é de 2013, ano em que Dorothi entrou na faculdade. A mesma pesquisa diz que no ano de 2012 para 2013 houve uma queda de 5,7% no número de concluintes.

“Hoje, eu me sinto um bicho raro. Sou um bicho raro?”, indagou Dorothi. É, infelizmente, é, querida. Isso é ruim?, perguntei. “Tem um lado positivo, mas tem um lado negativo. Repare mesmo: Vou fazer minha prova, não sou aluna de 10. Sou de 8 ou 9. Mas se um professor chegar e disser que não precisa fazer prova, digo professora, não faça uma coisa dessas, não me machuque”, contou a octogenária.

É aceitável o argumento de Dorothi. Se é para voltar à faculdade e viver com intensidade, se é para enfrentar a resignação, que seja com lealdade à causa escolhida. Viva as Dorothis.