Cultura no prato As elites brasileiras não valorizavam a comida produzida pelas classes populares. Agora é a vez de todos sentarem-se à mesa

Publicação: 10/12/2014 03:00

O chef paulista Alex Atala - uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2013, segundo a revista Time - lançou o desafio: tire a foto de um prato com sua comida brasileira predileta e desafie três pessoas a fazerem o mesmo. Ele posou como fã de galinhada. A iniciativa integra a campanha lançada oficialmente na segunda-feira, em São Paulo, batizada de Eu como cultura. O objetivo é reunir assinaturas para a aprovação de um Projeto de Lei que reconhece a gastronomia como cultura. Com isso, ingredientes, receitas e pesquisas relacionados à cultura gastronômica popular nacional seriam beneficiados com acesso a leis de incentivo fiscal (Lei Rouanet).

Em relação a outros países, estamos atrasados no reconhecimento da gastronomia como componente cultural. Mais do que isso, é o modo de comer que nos identifica como brasileiros. E nós, nordestinos, principalmente os sertanejos, temos mais motivos ainda para saborear este orgulho. A questão é que corremos o risco de perder nossas características gustativas com o avanço de costumes vindos de longe, tangidos pela modernidade.

O sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, já em 1926, com a publicação do seu Manifesto regionalista, buscou exaltar os hábitos, os costumes, o saber e o fazer dos nordestinos. Freyre, sete anos antes de lançar sua obra mais importante, Casa-grande & senzala, inovava ao tratar de um tema pouco valorizado até então: a estética e as tradições da cozinha brasileira.

Das três regiões culinárias que se destacariam no país, segundo o autor – a baiana, a nordestina e a mineira – seria a cozinha do Nordeste agrário a que melhor equilibraria ou harmonizaria as influências portuguesas, africanas e ameríndias. “Na cozinha do Nordeste agrário não há nem excesso português como na capital do Brasil nem excesso africano como na Bahia nem quase exclusividade ameríndia como no extremo Norte, porém o equilíbrio”.

Gilberto Freyre não se esquece de pagar tributo aos portugueses, reconhecendo que, sem as tradições de forno e fogão do país europeu, do lastro do toucinho, do paio, do grão-de-bico e da couve, a situação culinária do Brasil seria bem diversa. “Não haveria unidade nacional sob a variedade regional”, ressaltava.

Mas o manifesto de Freyre alertava para o perigo da descaracterização da culinária nordestina. Em suas frases de efeito, lamentava o fato de as novas gerações não darem o valor devido aos quitutes regionais: “Toda essa tradição está em declínio, ou pelo menos, em crise no Nordeste. E uma cozinha em crise significa uma civilização inteira em perigo: o perigo de descaracterizar-se”.

Depois de Gilberto Freyre, outros autores nordestinos - os pernambucanos Josué de Castro e Mário Souto Maior e o potiguar Luís da Câmara Cascudo - também manifestaram preocupação sobre a perda da identidade de uma região que, por mais de quatro séculos, praticamente manteve-se isolada do restante do país, primeiro pela cultura de subsistência e depois pelo banditismo.

No campo da etnografia alimentar, Luís da Câmara Cascudo é ainda hoje um autor referência no assunto, principalmente por causa do seu livro História da alimentação no Brasil, uma obra em dois volumes, lançada originalmente em 1967. Em suas 955 páginas, o folclorista descreve as origens da cozinha nacional, destacando que foi nas brenhas da região que menos teve alterações neste aspecto. “O de–comer no Sertão nordestino conservou-se imóvel em seus padrões durante séculos”.

O sociólogo paulista Carlos Alberto Dória, autor de A formação da culinária brasileira, destaca que a culinária sertaneja, mesmo sendo tão rica em sabores e significados, nunca foi muito valorizada pelas elites brasileiras, por representar uma comida feita “por e para” pobres. Segundo ele, o Brasil se insere na relação de países com passado colonial onde a burguesia não quis se confundir com as populações nativas, elegendo como referência a origem europeia. Desta forma, o país foi construído sobre uma dualidade cultural. Índios, negros e europeus nunca partilharam os mesmos signos. A exclusão era manifestada nas expressões do dia a dia, como “religião de negro”, “cozinha de sertanejo”...

Pois agora estamos todos no mesmo prato. Ou melhor, em vários. Eu voto na buchada. E você?