O homem da navalha afiada Toda cidade tem seus personagens; o barbeiro Chico da Curva é um deles, quase um patrimônio vivo não tombado do Recife

Silvia Bessa
silviabessa.pe@dabr.com.br

Publicação: 13/06/2015 03:00

Pois teve um dia que chegou na barbearia de seu Chico um camarada petulante inventando moda. O sujeito encostou a cabeça na cadeira de ferro Ferrante cinza que pesa uns 100 quilos e ditou a inusitada exigência: “Quero que faça a barba, mas não toque no meu rosto. Homem não toca em mim!”. Seu Chico quase não crê: “Não existe como fazer a barba assim. É acidente na certa”, respondeu. Puxa para cá, negocia para cá, seu Chico fechou a cara e acabou com o trololó: “Então saia da minha barbearia”. O “cabra” saiu.
Pequena ou megalópole, cidade que se preza tem autoridades populares da estirpe dele. A mim, que - confesso - tenho o mau hábito de espalhar notícia, disseram que seu Chico da Curva é o dono da “navalha mais afiada da Zona Norte”. “Homi bom”, que tem a barbearia mais “vintage” da cidade, que é “a História e é capaz de reunir gente que conta histórias” no bairro do Parnamirim, na curva da pracinha. Falaram a verdade. Para começar, seu Chico está no mesmo lugar há 46 anos; e esse tempo já dá a Francisco de Souza, 71 anos, o título de quase-autoridade, um tipo de patrimônio do Recife sem tombamento. Para terminar o apurado: é verdade que ele fala de barba, cabelo, bigode, costumes. Da aristocracia que se foi, do escritor que contava anedotas, da mudança do trânsito da capital pernambucana, dos homens de antigamente que comentavam à boca miúda sobre as aventuras com as mulheres e do hábito dos homens jovens que mal dão bom dia; só teclam.
Aliás, seu Chico da Curva parece chateado com esse povo novo. “No quesito conversa, prefiro os veteranos. Os mais moços vêm aqui, sentam ali (aponta para a cadeira de espera) e aí morreu a besta, não dão um pio”. Quando vão sair, perguntam quanto foi o corte e pronto. Vão embora. “Isso quando não ficam querendo cortar o cabelo com o celular na mão. Vou dizer é hor-rí-vel”, opina, em sílabas. “É ruim, minha filha, porque quase não temos diálogo”, explica. Nas entradas e saídas dos encontros, lamentou-se dessa onda tecnológica que imagino ser péssima para uma barbearia porque impõe um silêncio considerado desnecessário para o ambiente.
De barba seu Chico da Curva entende. Primeiro coloca espuma e segura firme a pele antes de arrastar a lâmina com precisão. Segundo ele, se for de jovem, sem rugas, o negócio é mais fácil. Se for a pele de homem maduro, áspera, ou idoso, a atenção precisa ser dobrada. E se é para falar de corte de cabelo, é justo dizer que seu Chico entende mais. “Não sei porque os clientes têm mania de dizer que se eu errar não pagam. Até hoje, ninguém nunca deixou de pagar o corte”, adianta ele, que corta cabelo da quarta geração de uma mesma família. Até para cuidar de carecas, o barbeiro do Parnamirim tem seu modo. “Nesse caso, faço o corte-cobertura para que os fios de lado cubram o do lado que está faltando”, explica tecnicamente.
Aprendeu o que põe em prática diariamente das 8h às 19 h, sem horário para almoço, com o pai, barbeiro como ele. A brincadeira de menino virou profissão. “Amo meu trabalho porque foi de onde tirei minha sobrevivência a vida inteira desde 1969 e com ele criei meus quatro filhos”, conta ele, que ainda hoje tem clientes-amigos que passam para bater meio dedo de prosa e deixam a conta no pendura.
A barbearia de seu Chico da Curva é um oásis no bairro do Parnamirim, onde antes passava um carro a cada expediente do dia e onde hoje trafegam dezenas a cada minuto, como bem narrou ele. Para ele, a barbearia virou um observatório de mudanças do tempo, de volta ao passado.
No dia que fiz visita surpresa a seu Chico para conhecê-lo, encontrei um cidadão, professor de história aposentado, numa conversa das mais saudosistas. Era fim de tarde, engarrafamento na Praça do Parnamirim fazia barulho e seu Chico e o cliente riam muito. Da camisa de nylon Valissé “volta ao mundo”, da década de 1960, que fazia o “cabra ficar de molho no suor”, dos Dodges, dos Aero Willys (carros antigos), dos clientes que visitavam a barbearia, contavam causos e mentiam mais do “que cachorro de preá”. Eles se divertiam ao lado da famosa cadeira Ferrante de ferro de seu Chico da Curva. “Só não sei até quando porque a crise está grande. Aumentaram os salões de bairro e a crise recente aumentou”, emenda.
Desde a semana passada passei a torcer para que a crise - a econômica e a mais moderna, que acaba com tudo que tem passado - poupe a memória da gente, da nossa gente. Pelo menos isso.