Alegria, o coveiro
Vinte e sete anos enterrando gente e tirando o sustento da família, coveiro e zelador de túmulos, aqui está um representante do profissional mais procurado nesses dias pré-Finados
SILVIA BESSA
silviabessa.pe@dabr.com.br
Publicação: 31/10/2015 03:00
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Sua formação, ou preparação para enfrentar a rotina, veio do Instituto de Medicina Legal, o IML. “Depois de ficar dois anos no IML não se vê problema em cemitério”. Paulo José de Aquino, 56 anos, manteve a mulher, Marinalva, e criou quatro filhos enterrando gente. O menino mais velho dele, Rafael, tem 28 anos. Enterra de bebê a idoso senil, com quase 100 anos. Mãe, pai, filhos, irmãos, marido ou mulher. “Para mim, o pior é enterrar criança de três, quatro anos. Fico pensando quantas noites as famílias passaram cuidando daquela pessoinha, dando remédio. Fico pensando nelas, sei lá. Pensando no futuro somente…”, confidenciou-me. Ou seja, naquele que não haverá.
“Já chorei algumas vezes”, disse, citando enterros de quem nunca viu vivo e de amigos com quem convivia. Alegria é discreto, porém observador. Tira o chapéu para esperar os momentos mais emocionados das famílias olhando para o corpo dos seus entes e aguarda as ordens dos que mantém serenidade para definir a hora. “Já vi de tudo aqui”. São tantos os episódios que narra os mais recentes. Por causa de um deles, na quadra 28 do cemitério que fica no bairro de Tejipió aqui no Recife, ficou triste como cidadão. A mãe morreu. Tinha cinco filhos ao redor do buraco. “Um chororô, muito barulho. Foi quando ouvi uma filha dizendo: “E agora, quem vai lavar a roupa da gente? Quase não acreditei naquilo”. Não se passou dez minutos após o enterro - lembra demonstrando chateação com o tempo corrido - “e aí todo mundo foi embora”. “É, isso não entendo. As pessoas são tão queridas e rápido o povo deixa só”, comentou o coveiro, até ele comconflitos para metabolizar a morte.
Enterrou famílias, viu famílias ali para enterrar sequencialmente seus mortos. “Há pouco conheci um pessoal e enterrei uma pessoa deles. Dois meses depois volta todo mundo para enterrar outra e colocar na gaveta de cima”. É a profissão de Alegria e ele se dedica ao trabalho de coveiro e zelador de covas. Funcionário da Emlurb, nas horas vagas cuida dos jazigos em troca de pequenos agrados. Faz jardins de vários gostos e tem tendência a indicar amesma flor para as jarras. Prefere o buquê de noiva porque é branca e perfumada.
“Gosto muito da minha profissão. Eu tenho pouca leitura, então a vida de coveiro me deu sobrevivência. Agradeço a Deus por isso”, diz Paulo Alegria, de cujo nome sempre sugere comentários extras naquele cemitério. “Dizem assim: pelo menos ouvimos falar de uma alegria nesse lugar…”. Trabalha de dia e à noite, se preciso. Sempre há quem pergunte sobre medos e almas, em especial os coveiros novatos. Ele, no entanto, parece cético quanto a essas possibilidades. “Uma vez um amigo disse que ouviu alguma pessoa falando com ele. Não vou afirmar que foi verdade ou mentira, porque tudo é possível, mas comigo nunca aconteceu nada”. Segundo Alegria, mantém um sono bom e não lembra de pesadelos, mesmo que o trabalho tenha sido puxado. Com a família, evita entrar em detalhes. Só diz se foi cansativo ou não. Alegria vê a profissão de coveiro como qualquer outra. Quando os filhos eram menores os levou para mostrar como era a lida. Já perdeu pai e mãe. Da mãe fez questão de lavar os ossos dela quando foi chamado para tal: “Me acostumei a fazer o que tem de ser feito”. Reza diariamente. Demonstra estar preocupado com os riscos da violência urbana. Pede pela proteção dos filhos dizendo: “Deus, livrai-os de todo o mal”. Sofia, anetinha, ganha orações mais intensas. “Ela é minha vida”, definiu, usando frase emblemática.
Passei os últimos 28 anos querendo saber se Paulo Alegria tinha medo da morte. Ontem perguntei a ele. Respondeu-me com surpresa: “Eu?”. Parecia o impossível. Pensou e voltou: “Medo todo mundo tem, mas infelizmente, se Deus vier buscar, não se pode dizer não”. Conheci Alegria aos 12 anos. Ele enterrou meu irmão, vítima de um acidente de carro. Minha adolescência foi marcada pela imagem de meu pai, mãe e uma irmã sentados num banquinho de madeira, cuidando de um jazigo aos domingos. Alegria trazia água num regador verde e boa conversa. Sempre sorridente. Reencontrei Alegria, o coveiro, há alguns anos ao enterrar uma filha. Ele me veio à memória esses dias que antecedem o 2 de novembro, Dia de Finados.