Um rei que brincava com sanfona Difícil mesmo é o Nordeste deixar passar em branco aniversário de Luiz Gonzaga, que deu voz à região e foi confundido com ela

Luce Pereira
lucepereira.pe@dabr.com.br

Publicação: 13/12/2015 03:00

Não existe ambiente propício para a genialidade se transformar em árvore de frutos eternos. Gênios simplesmente nascem e de suas “aldeias” ou longe delas são capazes de criar, ao redor do mundo, um exército de cativos admiradores. É quase impossível, a cada 13 de dezembro, não lembrar que bem próximo de nós circulava um deles, metido em roupas de vaqueiro, com uma sanfona sempre disposta a cantar as dores e alegrias de um povo chamado Nordeste. Luiz Gonzaga estaria completando 103 anos hoje, se não tivesse se ausentado há 23. Foi-se sem deixar nenhum tijolo por ser colocado no grande edifício em que se transformou sua obra e, portanto, despediu-se como poucos – sem pedra nenhuma no caminho do imenso legado.

Não resta dúvida, é um mito. E como todos eles, teve a vida e a obra cascavilhada por enxeridos/curiosos, pesquisadores, especialistas, de maneira que as origens de sua genialidade não são mais segredo para ninguém. No entanto, a mesma pergunta segue sendo feita: como é possível uma música, poesia tão sábia, tocante, verdadeira, ter nascido no meio da caatinga, em universo tão severo, de luta feroz pela sobrevivência? Isto nem as (cerca de) 19 publicações, incontáveis artigos e teses acadêmicas conseguiram explicar, para alívio de quem prefere imaginá-lo como um sujeito pelo qual um anjo teimoso tomou-se de simpatia, soprando-lhe ao ouvido aquelas mais de quinhentas canções. Afinal de contas, para o bem e para o mal, nem tudo na vida pode ser explicado. Mesmo à luz da ciência.

Enquanto o segundo dos nove filhos de Ana e Januário nascia na casa de chão batido da Fazenda Caiçara (Exu, 700 quilômetros do Recife), a difícil realidade no Sertão se encarregava de ampliar a distância entre o mundo de Lula e o que, numa língua estranha, perseguia o progresso como se apenas ele desse sentido à rápida passagem do homem pelo planeta. E quando este mesmo mundo descobria as vitaminas, naquele em que a Asa Branca musicava o destino do menino era praticamente a fé que nutria. Em um o medo da morte, que poderia vir com certo cabra chamado Lampião ou com uma doença crônica chamada miséria; em outro a celebração da vida, interrompida para mais de 1.500 pessoas que viajavam no luxuosíssimo transatlântico Titanic. Luiz Gonzaga nunca chegaria a conhecer nada parecido, mas sua música navegou até se transformar em tese de doutorado defendida pela professora paraibana Elba Braga Ramalho, na Universidade de Liverpool (Inglaterra), terra dos Beatles. O trabalho acabou virando livro, em 2012, quando do centenário do Rei do baião.

Aliás, para quem conseguiu ser confundido com o próprio Nordeste, muitas vezes visto como legítimo embaixador das faltas, tesouros e aspirações do seu povo, referir-se a ele como Rei do baião é algo como avaliar a obra de Cristo apenas pelo milagre dos peixes. O artista mais biografado do país, que passou a ter a história contada em páginas (do cordel às teses) a partir dos 40 anos, foi, entre outras tantas proezas, o que conseguiu compor a música que, se não é hino tem status de hino. Asa Branca, de tão bonita, chega a doer no coração – ao menos da gente a quem Euclides da Cunha, recusando o julgamento das aparências, chamou de forte.