O mundo nunca foi tão fútil Fazer o "caminho de volta" é urgente mas não simples, porque o consumo segue vitorioso na tarefa de conquistar corações e mentes ao redor do planeta

Luce Pereira
lucepereira.pe@dabr.com.br

Publicação: 08/01/2016 03:00

Se houvesse um “armário” imaginário para guardar palavras, muitas das que exprimem valores universais, inclusive, já estariam dormindo profundamente no fundo de gavetas. A indústria e o seu selvagem apelo ao consumo trabalham cada vez mais pelo esquecimento de uma em especial – naturalidade. Sempre que alguém sente ao menos uma pontinha de nostalgia “daquele tempo” no qual cabia, por exemplo, paciência para esperar a chegada de um bebê (viesse ele com o sexo e a bagagem biológica que viesse), a conclusão não surpreende: a pessoa só pode estar ficando “velha”. E “velhos” passam a ser todos os que não madrugam nas filas para adquirir o lançamento (quase mensal) de uma bugiganga tecnológica e se preocupam com quem de fato não poderia estar em outras filas, buscando sobrevivência pura e simples. Parece um mundo sem sentido para optantes pelo “caminho de volta”, aquela estrada que em lugar dos espelhos elege a simplicidade e onde se entende, afinal, que o narcisismo levado a extremos só produz mesmo frustração.

Sobre esta “fúria” com que a indústria de novidades tenta invadir corações e mentes de milhões ao redor do planeta, transformando o mundo em um museu de renovadas bobagens, uma notícia nascida na Espanha: certa fábrica de lá concluiu que seria difícil para muitos pais resistir à emoção de partilhar músicas com o bebê, já a partir do quarto mês de gestação, e então criou dispositivo semelhante a um absorvente intravaginal. Conectado ao Ipod da família, o transmissor levaria o repertório à criança em gestação. Obviamente, a indústria aposta em consumidores acometidos de grave doença conhecida como falta de informações básicas, ao menos no que se refere a desenvolvimento embrionário. Diz a ciência que fetos começam a ouvir sons entre a 12ª e a 16ª semana e somente na 14ª passam a reconhecer aqueles provenientes da fala. Logo, o investimento de R$ 550 (preço do aparelho na internet) é inútil, só devendo servir mesmo para o casal exibir socialmente a preocupação com o bem-estar do rebento e a expectativa de que ele nasça muito mais sensível do que os outros.

A propósito, sobre o desejo de milhões ao redor do planete de gerar gente “sob medida” a partir da técnica de manipulação genética, a ciência, enquanto não descarta esta possibilidade, morre de medo dela. Se hoje o abismo que separa crianças pobres de crianças ricas já é intransponível, imagine o tamanho da desvantagem das primeiras em relação às segundas se essas viessem ao mundo programadas para viver mais e dar certo em tudo. Se às desigualdades é atribuída a maior causa dos sofrimentos humanos e se já é tão sufocante conviver com elas, em um universo dominando pela perfeição “fabricada” os níveis de escravidão seriam ainda mais insuportáveis. Diante de perspectivas tão assustadoras (não esqueça de lembrar que a ficção foi, muitas vezes, um ensaio da realidade), aqueles que refletem, ponderam e se esforçam para contribuir – os rotulados de “velhos” – só têm uma pergunta e nenhuma resposta: aonde vamos parar com tamanha indiferença?

Na antessala (cheia) do médico que iria me atender, acho mesmo que só doeu em mim a matéria que, na televisão, mostrava o sofrimento de habitantes do interior vitimados por doenças produzidas pelo Aedes aegypti – chikungunya, zika vírus, dengue. A maioria, no entanto, de smartphone à mão, nem desgrudava os olhos dos visores coloridos. A mesma pergunta veio, acompanhada de nenhuma resposta: aonde vamos assim? Então a atendente chamou meu nome sem me olhar, mesma dificuldade que o médico demonstrou ter. Que o mundo tem, melhor dizendo.