Acerto de contas

por Pierre Lucena
pierre.lucena@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 07/07/2018 03:00

Como o carro "limpou" as cidades

Que o carro é o grande problema das grandes cidades, ninguém tem dúvida, mas a raiz é muito mais profunda: é o uso do transporte individual como meio de mobilidade nas grandes cidades que traz grandes problemas. Pouco mais de uma década antes do surgimento do carro como transporte individual, um meio de transporte muito mais precário tomava conta das grandes cidades: o cavalo.

Hoje é difícil imaginar como o cavalo poderia causar mais problemas às cidades do que os milhões de automóveis, mas acredite, isto é possível.

No final do século 19, o uso de cavalos como transporte se intensificou de tal forma que virou um enorme transtorno para as metrópoles. Basta dizer que em Nova York era possível encontrar 200 mil cavalos andando diariamente pelas ruas. Isso comparado aos oito milhões de automóveis parece algo bem melhor, mas a realidade era bem mais complicada. Como cada cavalo produz 10 quilos de esterco por dia, a cidade produzia duas mil toneladas de esterco diariamente, obviamente jogados nas ruas. Isso sem falar nos cavalos mortos que acabavam desovados nas principais vias da cidade. Havia uma estimativa de 15 mil carcaças de cavalos por ano apenas na metrópole americana.

O cavalo servia tanto ao transporte individual dos ricos como também ao transporte coletivo. Os animais puxavam bondes pelos trilhos, o que era um barulho infernal, além de servir para ambulâncias e bombeiros. Atropelamentos eram muito mais frequentes do que hoje em dia.

Entre o grande número de externalidades negativas, a pior de todas era exatamente o esterco. Com mais de 2 milhões de toneladas de excremento por dia, as ruas representavam uma proliferação de doenças com a enorme poluição. Como não havia possibilidade de escoamento de todo este esterco, as ruas acumulavam tudo e as chuvas faziam com que uma massa podre se espalhasse pelas ruas. Um matemático chegou a calcular que, em 1910, o cocô do cavalo estaria no terceiro andar dos prédios em Nova York, tal o acúmulo nas ruas.

Uma figura era indispensável à época: o rapaz que limpava a rua para as madames atravessarem com seus pomposos vestidos. Era uma espécie de flanelinha do Século 19.

Mas o problema não se limitava a Nova York. Londres, Amsterdam, Lisboa e outras metrópoles sofriam do mesmo mal e não sabiam o que fazer.

Para tentar encontrar uma solução global, foi organizada em Nova York em 1898 a primeira conferência mundial de planejamento urbano. Planejada para ocorrer em 10 dias acabou em menos de 3 dias em total divergência e fracasso. Algumas cidades queriam proibir o cavalo como forma de transporte individual e outras queriam garantir o “direito” ao próprio cavalo. Para ilustrar bem a preocupação, basta dizer o tema do encontro: Horseshit.

Mas o problema foi resolvido quase que instantaneamente por uma inovação, que foi o advento do carro como produto massificado, em especial o Ford T, em 1908. O cavalo foi deixado de lado sem o menor pudor, limpando as ruas de todo aquele esterco. Logo depois o bonde elétrico chegou, acabando com o cavalo como transporte coletivo.

Nem preciso dizer que os problemas apenas mudaram de figura, mas a essência permaneceu: assim como os cavalos, o carro também vem com um grande conjunto de externalidades negativas, como poluição, trânsito etc.

O que chama a atenção é a grande capacidade humana de buscar soluções de inovação, mas estas só se tornam eficazes quando aumentam o interesse individual. Este processo de substituição por inovação, conhecido como “destruição criativa”, efetivamente ocorre quando a “nova solução” se enquadra nas forças de mercado. O processo se acelera e pouca coisa pode ser feita.

No caso relatado neste artigo, solucionou grande parte dos problemas, já que as cidades teriam se transformado em um inferno bem pior do que conhecemos hoje.

O grande desafio que enfrentamos está na dificuldade em encontrarmos soluções coletivas, quando as pessoas têm algum tipo de incentivo ou resultados em soluções individuais. O caso do cavalo e do carro se assemelha, apesar dos problemas apresentarem externalidades negativas diferentes. Enquanto isso, a vida nas cidades é cada dia mais difícil, já que não temos centralidades em bairros e dependemos de mobilidade urbana em grande escala.

Ah! Só como curiosidade: aquelas belas escadas nos bairros chiques de Manhatan, como West Village (onde se passa o seriado Sex and the city), era justamente para evitar que as residências fossem inundadas pelo excremento equino.

Esta história é retratada no livro Super Freakonomics, de Steven Levitt e Stephen Dubner, de onde tirei a maior parte do artigo de hoje.