Concerto visual Projeto inédito no estado em fase de finalização cria uma Orquestra de Fotografia cujas músicas foram compostas a partir de ensaios feitos por artistas

Luiza Maia
luizamaia.pe@dabr.com.br

Publicação: 30/08/2015 03:00

 (BETO FIGUEIROA/DIVULGAÇÃO)

Enquanto uma mostra em cartaz na National Galery, em Londres, apresenta músicas inspiradas em quadros de Paul Cézanne e Théo van Rysselberghe, um projeto instiga compositores pernambucanos - ou com intensa relação com o estado - a criar a partir de obras de artistas visuais conterrâneos. Idealizada pelo fotógrafo Gilvan Barreto e com produção de Pupillo, da Nação Zumbi, e Berna Vieira, a Orquestra Pernambucana de Fotografia é formada por nove ensaios e nove canções sobre temas distintos.

As produções dialogam com formas múltiplas de expressão. Gilvan se inspirou na admiração pela música pernambucana florescida desde os primeiros sons do manguebeat, nos anos 1990. “É um encontro, uma jam session. A gente se junta para fazer imagens e música entre amigos. Houve preocupação de não impor nada a ninguém. Era um jogo, mas as regras podiam ser adaptadas”, diz.
A relação dos artistas com as outras linguagens é próxima. Ricardo Labastier compõe e toca com instrumentos percussivos. Junio Barreto, Juliano Holanda e Fábio Trummer já assinaram trilhas de espetáculos de teatro, dança, cinema ou TV. A primeira fotografia publicada de Priscilla Buhr está no encarte de Tocar na banda (2003), da Cumadre Fulozinha, banda da qual a irmã, Karina, era vocalista. Lira, ex-Cordel do Fogo Encantado, é o responsável pela trilha de documentário de Cláudio Assis sobre o artista plástico Rodrigo Braga - ambos no  grupo regido por Gilvan. “Ressinto que a gente trabalhe tanto nas nossas caixinhas, nas nossas salas”, confessa Braga.

A experiência de uma canção inspirada por um ensaio fotográfico é inédita para quase todos. Beto Figueiroa disse nunca ter participado de projeto semelhante, mas logo recordou a parceria com Berna Vieira no Canal 03, criado por ele, Mateus Sá, Luca Barreto e Jura Capela em 1997 e mantido por 10 anos. “A gente fazia projeções de slides em exposições, eventos”, conta Beto.

O resultado da orquestra será lançado como livro pela Jaraguá Produções em outubro. Cada ensaio terá 14 páginas, e CD encartado. Mas os trabalhos já trilham caminhos próprios. Lira e Karina inseriram Desamar e Rimã nos álbuns O labirinto e o desmantelo e Selvática (em produção), respectivamente. Bárbara exibiu Faz que vai no Recife e Gabriel articula exposição, além de ter divulgado o trabalho na web, como Beto. A esperança de Gilvan é que não só as obras, mas a ideia gere frutos.

 

Arquétipos

Conterrâneos de Goiana, no Litoral Norte pernambucano, o fotógrafo Beto Figueiroa e o cantor, instrumentista e compositor Juliano Holanda (foto) são parceiros de trabalho - o encarte do álbum A arte de ser invisível (2013) tem imagens clicadas por Beto, na casa do avó de Juliano. As primeiras fotografias do ensaio ExistenCidades já existiam, e o projeto foi ampliado durante viagens ao Pará, Rio Grande do Norte e a Alagoas, além de Serrita, no Sertão pernambucano. Em meio às distintas paisagens, da praia à seca, os personagens não têm rostos. Apenas os animais têm a identidade revelada. “A ideia é mais o arquétipo, desconstruir o corpo. Pode ser eu, você”, conta Beto. Nas letras, algumas paisagens ganham descrições literais, em um contorno poético. “É para ouvir vendo”, conta o autor, sobre De certa maneira.

 

Escuridão

Pio Figueiroa já era fã da Nação Zumbi, “desde moleque”, conheceu os integrantes e virou amigo do grupo - além de fotografar os mangueboys e dirigir o clipe Um sonho (com Lula e Ramon, filhos de Science e Du Peixe). Pio e Peixe (foto) foram os únicos a conversar sobre a proposta antes da criação, em reuniões e mensagens (e-mail e WhatsApp). O enigmático escuro - símbolo poético de silêncio, pausas, intervalo de notas - guiou os cliques de Sobre o escuro, nas férias de Pio, e a composição de Samba escuro, gravada em dueto com Lula. 

 

Natureza

A relação orgânica e estética entre a natureza e as formas humanas guiaram os cliques de Rodrigo Braga, em uma vila de pescadores no Cabo de Santo Agostinho, em junho de 2013. “Trata das formas da natureza, que se repetem, e da minha ação, que conduz o sentido. Em uma porção de barro vemelho, coloco uns gravetos e dou uma ideia de pulmão. Junto pequenos fragmentos de ossos com pedras”, esclarece ele, que nasceu em Manaus, foi criado no Recife e reside no Rio de Janeiro há quatro anos. Quando criou Corpo duro, ainda não sabia que a música seria composta por Otto (foto). O cantor e compositor amoleceu as firmes formas orgânicas na leve poesia de Pode falar cowboy. 

 

Marcas

Gilvan pinçou o ensaio e o texto O homem elegante, dedicados ao pai, morto em 2014: “Quando reescrevi, comecei a me distanciar do pessoal. É meu pai, mas é um homem, uma figura que partiu”. Palavras foram tatuadas na pele do artista. Em vez do pigmento, sangue. “Ele me deixou livre. Foi fácil, porque a tristeza torna você mais sensível”, diz Trummer (acima), sobre A gente jazz no mesmo corpo. Eles são amigos desde a década de 1990.

 

Desamar

Gabriel Mascaro não clicou, mas pediu - e chegou a comprar - fotografias inusitadas com forte significado implícito: retratos nos quais uma das pessoas teve o rosto cortado. “Eu chamo de cartografia do desafeto. A tesoura é gesto de empoderamento, tentativa de ressignificar o passado”, conta o diretor de Boi neon, selecionado para o Festival de Cinema de Veneza, na Itália. Às 13 imagens com cabeças decepadas e de fotografias das tesouras, agregou depoimentos dos donos. “Em geral, as pessoas fizeram como gesto de afirmação. Minha pergunta é: com o buraco, a ausência não vira também presença?”, reflete. Lira (foto) traça questionamentos em Desamar - “que sobrou do amor?”. A faixa está em O labirinto e o desmantelo, de abril, e o ensaio está no site do artista.

 

Última dança

Através do registro de um garoto, um casal arrumado para sair, uma dança a dois, capturada nas ruas do Recife Antigo, e sangue espalhado por escadarias, Ricardo Labastier reproduziu uma inquietação. “Toda vez que vejo bailes, salões de dança, me vem à cabeça a beleza, mas também os desfechos mais violentos, com sangue, morte até”. O ensaio, sem título, remeteu a inspiração do cantor e compositor Junio Barreto, em parceria com Pupillo, aos rituais de umbanda e candomblé em Última dança. “Porque eu vi as pessoas girando, dançando. A dança fica entreaberta. Pode ser alguém recebendo um santo. É dança, oferenda, mas pode ser morte”, instiga Junio (foto), que não tem religião e assinou trilhas para teatro, dança e cinema, mas nunca compôs a partir de  fotos. 

 

Rimã

Irmãs, Priscilla e Karina Buhr (foto) acompanham de perto a carreira uma da outra. O primeiro trabalho de Priscilla foi para o encarte do 2º CD do Cumadre Fulozinha, Tocar na banda (2003), na qual Karina cantava. A série de imagens Lento tem um quê autobiográfico. Retrata novo ciclo profissional e pessoal da fotógrafa, que cortou uma guia usada por ela no pulso por cinco anos. “Usei o simbolismo da quebra. São nuances, como relicário de histórias e sentimentos. Uma libélula morta dentro de um livro transmite a ideia de guardar a liberdade”, conta Priscilla. Rimã, anagrama de irmã, foi composta em um dia. Mesmo sem pistas, Karina escreveu sobre precisar aprender de novo.

 

Interação

Na produção, o ensaio de Bárbara Wagner com o marido, Benjamim de Burca, virou o vídeo Faz que vai, de 12 minutos, com quatro recifenses de até 24 anos. Negros e gays, são os primeiros da família a trabalhar com cultura. Passistas de frevo durante o carnaval e, no resto do ano, bailarinos de outros estilos. Tchanna mescla o ritmo ao funk. Bhrunno, à swingueira. Ryan, ao eletro. Edson, ao vogue. A trilha, com instrumentos percussivos, foi feita por Cícero Batom, Wellington Jamaica e Waltinho D’souza, da Orquestra Popular da Bomba do Hemetério, também na interseção entre os gêneros musicais.

 

Ideologia

Dois grupos libertários da década de 1970 são homenageados pela única junção de projetos não inéditos da orquestra. Oito fotos do acervo de Ana Farache - lançado em livro em 2016 - são combinadas com a canção O pirata, da banda Ave Sangria. O ensaio, em preto e branco, foi no pátio da casa onde Ana morava, em Olinda, perto da sede do Vivencial. “Foi uma época difícil de se viver, por conta da ditadura, e esse pessoal mostrou ser possível. Foi importante a ousadia deles, num momento de preconceito e hipocrisia”, opina. Ela comemora a junção. No projeto, a canção ganhou versão da cantora Isaar.