Jornalismo enquadrado em tirinhas Histórias em quadrinhos com fusão entre gênero de notícias e desenhos reflete potencial de narrar fatos reais em linguagem da ficção

Alexandre de paula
edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 31/05/2016 03:00

 (COMPANHIA DAS LETRAS/DIVULGAÇÃO)
No princípio era o verbo. Então, o maltês Joe Sacco achou por bem misturá-lo com o traço, na década de 1990, e criar o que chamou de jornalismo em quadrinhos. E o mundo viu, aos poucos, que era bom. “O grande mérito de Sacco é ter realizado reportagens que não são mais experimentos, mas, sim, trabalhos maduros”, aponta o tradutor e pesquisador do gênero Augusto Paim. Apesar de ainda causar espanto, o gênero iniciado por Joe Sacco (que lança em junho a edição brasileira da HQ Reportagens, pela Companhia das Letras) vem rompendo barreiras e aparecendo como uma maneira criativa de fazer jornalismo.

Paim ressalta que, mesmo antes de o autor de Palestina cunhar o termo, já havia quem tentasse produzir narrativas jornalísticas por meio de possibilidades gráficas. Ele menciona exemplos de matérias publicadas ainda no século 19, época em que o desenho era a única maneira de ilustrar um texto antes do advento da fotografia. “Não são histórias em quadrinhos, mas já evidenciam uma tradição do uso realista da linguagem do desenho para fins jornalísticos”, explica.

Considerado pai do gênero com os livros que começou a publicar na década de 1990, Sacco não desejava exatamente produzir quadrinhos jornalísticos. O cartunista queria ser redator e escrever textos tradicionais, mas não conseguiu emprego e se voltou a algo que já fazia: desenhar. Misturando as duas paixões, desenvolveu uma maneira própria de ser jornalista. Não foi fácil convencer os tradicionalistas, mas, aos poucos - ele ressalta sempre nas entrevistas que concede - as pessoas começaram a levá-lo a sério.

Mais de duas décadas se passaram desde que o maltês recebeu um Pullitzer (em 1992) por Palestina, mas ele continua como referência para quem se aventura a representar a realidade por meio de quadrinhos. Os jornalistas Alexandre de Maio e Robson Vilalba, principais representantes do gênero no Brasil, contam que ainda hoje há quem torça o nariz para a proposta de produzir reportagens de uma maneira diferente. “Sofri muita resistência, o pessoal não entendia. Achava que perdia a veracidade da matéria. Um fato importante para quebrar o preconceito com os quadrinhos dentro do jornalismo foi ter ganhado o Prêmio Tim Lopes, em 2013, com uma matéria sobre exploração sexual infantil”, conta Alexandre de Maio.

“Acho que essa resistência é normal a tudo que é novo”, aponta Vilalba, autor do que se considera o primeiro livro de jornalismo em quadrinhos brasileiro, Notas de um tempo silenciado, sobre a repressão na ditadura militar. “Eu tinha muito medo que outros jornalistas dissessem que eu só havia conseguido publicar pelos desenhos, que o conteúdo era fraco. Acabei agraciado com o prêmio Vladimir Herzog de Jornalismo e Direitos Humanos (2014). Isso me deixou mais seguro”, conta.

O pesquisador Augusto Paim acredita que as experiências utilizando jornalismo em quadrinhos no Brasil estão em crescimento, com estudos e projetos experimentando o gênero. Ele destaca justamente Vilalba e De Maio como nomes fortes no país. “Com uma produção constante, ambos têm aberto espaço para o quadrinho jornalístico nos veículos em que atuam ou com os quais colaboram”, aponta.

Narrativa é pouco explorada

Além da abordagem visual propiciada pelo desenho, uma característica necessária ao jornalismo em quadrinhos é apresentar uma visão mais aprofundada e completa dos fatos, acreditam os especialistas. “Eles só funcionam, assim como o novo jornalismo, quando a reportagem tem profundidade, um bom levantamento de detalhes”, explica Robson Vilalba.
Para o pesquisador Augusto Paim, a linguagem dos quadrinhos pode servir também para humanizar o relato, do mesmo modo que o uso de técnicas literárias pode aproximar o jornalismo do leitor. “Essa humanização ocorre de forma diferente da literatura. O desenho é uma ferramenta apropriada para retratar atmosferas e explicitar visualmente algo que não foi dito, porém foi visto ou sentido”, diz Paim.

Em um momento conturbado, as reportagens em HQs podem incorporar possibilidades narrativas ao que já é produzido comumente nas redações. “Ele tem ganhado espaço e recebido mais atenção em um momento em que o jornalismo vê surgir efervescência de novos formatos narrativos”, observa Paim.

Alexandre de Maio acredita que a utilização de quadrinhos ainda é uma forma narrativa pouco explorada. “Vejo que o jornalismo de quadrinhos poderia fazer parte de qualquer publicação, da mesma forma que a entrevista, a fotografia, a crônica, o infográfico e o vídeo”, acredita.

Para começar

Os especialistas ouvidos indicam Joe Sacco como uma ótima opção para quem quer se aventurar pela primeira vez no mundo do jornalismo produzido em quadrinhos. “Certeza que qualquer livro do Joe Sacco é um bom começo, mas gosto muito da série O fotógrafo, de Guibert, Lefèvre e Lemercier, que é uma HQ em cima de um trabalho de fotojornalismo”, recomenda Alexandre De Maio.