Psicodelia tropical Livro traça panorama do gênero musical no país e reúne as cem obras mais importantes

Alexandre de Paula
edviver.pe@dabr.com.br

Publicação: 10/09/2016 03:00

Tom Zé, na sua fase tropicalista, utilizou a ideia da antropofagia para criar canções dentro do estilo (Andre%u017D Conti/Divulgacao )
Tom Zé, na sua fase tropicalista, utilizou a ideia da antropofagia para criar canções dentro do estilo
Ao ouvir um disco de Ronnie Von, em 1999, o jornalista Bento Araújo se deu conta de que existia rock psicodélico produzido no Brasil. “Eu já conhecia, obviamente, bandas como Os Mutantes e Novos Baianos, mas o fato do Ronnie Von também ter praticado o gênero me deixou intrigado”, lembra. O príncipe, como Ronnie ficou conhecido nos tempos de Jovem Guarda, foi responsável por três discos clássicos da psicodelia brasileira (desprezados à época, mas relançados e cultuados hoje). A partir da descoberta do LP Ronnie Von (de 1968), Araújo começou a vasculhar músicos que também tivessem praticado ou só flertado com a psicodelia em terras tupiniquins. Da pesquisa, surgiu o livro Lindo sonho delirante: 100 discos psicodélicos do Brasil, que arrecadou mais de R$ 84 mil na plataforma de financiamento coletivo Catarse - a meta eram R$ 45 mil - e será lançado em outubro em português e inglês.

“É difícil colher informações confiáveis sobre determinados artistas e grupos. Muitos são obscuros até hoje”, conta Araújo. Apesar da dificuldade de encontrar informações confiáveis sobre o gênero na música brasileira, ele destaca que, no fim, escolher o que entraria ou não no livro foi também um desafio. “Fui compilando um volume considerável de material, até que precisei parar nos álbuns e compactos lançados até 1975. Quando percebi, o livro estava saindo do controle. No fim, foi difícil optar pelos cem discos que entraram no livro.”

A importância de contar essa história está também na originalidade do rock psicodélico produzido no país. “Bandas como Mutantes, Novos Baianos e os tropicalistas Gil, Caetano, Gal e Tom Zé sacaram o lance da antropofagia. Pegaram a influência do rock e da cultura pop de fora e a transformaram em algo genuinamente brasileiro.”

Ele cita também os artistas nordestinos que foram responsáveis por uma cena forte e inventiva para a música brasileira. “Depois, veio a psicodelia nordestina, com Lula Côrtes, Zé Ramalho, Alceu Valença, Lailson de Holanda, Marconi Notaro, Flaviola, Ave Sangria etc. Essa cena é riquíssima, independente, totalmente underground e altamente psicodélica”, ressalta.

O pesquisador ressalta que a história da música psicodélica brasileira é o típico caso em que a cultura nacional precisa ser reconhecida no exterior para ser valorizada aqui. “É um fenômeno mais festejado lá fora do que aqui. Colecionadores e selos da Europa, dos EUA e do Japão precisaram redescobrir e relançar muitos desses discos para que o pessoal aqui do Brasil sacasse o lance”.

No livro, Araújo escreve também sobre músicos que, apesar de não dedicarem toda carreira à música psicodélica, experimentaram, durante a trajetória, o estilo. “Tivemos baluartes da nossa música que flertaram com o gênero em algum momento ou outro de suas carreiras, como Ronnie Von, Erasmo Carlos, Marcos Valle, João Donato, Jorge Ben, Raul Seixas etc.”

Memória
O jornalista conta que tentou também encontrar informações sobre artistas e bandas que, pela censura e os exílios que marcaram o período do regime militar no país, ficaram esquecidos. “O meu objetivo é que o livro se torne não somente referência aos pesquisadores e colecionadores de discos, mas que também preencha uma série de lacunas sobre as trajetórias de artistas e bandas em meio ao vácuo dos exílios e prisões e ao silêncio da censura daqueles tempos.”

“Ainda há muita música psicodélica sendo produzida! A cena anda efervescente. Tem bandas inclusive estourando no exterior, como a goiana Boogarins, por exemplo”, indica.

3 perguntas
Bento Araújo

Como foi a pesquisa?
Foi muito agradável e edificante, porém trabalhosa. É difícil colher informações confiáveis sobre determinados artistas e grupos. Muitos são obscuros até hoje. No entanto, fui compilando um volume considerável de material, até que precisei parar nos álbuns e compactos lançados até 1975. Quando percebi, o livro estava saindo do controle. No final foi difícil optar pelos 100 discos que entraram no livro.

Quais dificuldades enfrentou?
Pessoalmente, um grande desafio foi escrever o livro também em inglês. Mas deixei-me levar pela empolgação e pela possibilidade de apresentar o meu trabalho para o exterior. Era uma ideia que eu estava planejando há anos e agora finalmente vai acontecer. O assunto parece atraente ao pessoal de fora, e muitos colecionadores estão cansados de ler as mesmas histórias das tradicionais bandas inglesas e norte-americanas.

Qual a importância do crowdfunding para esse projeto?
A importância é imensa. Acredito que esse livro nunca teria sido viabilizado se não fosse via o crowdfunding que realizei pelo Catarse. Nenhuma editora teve um real interesse em lançá-lo até a campanha entrar no ar. Pode ser que agora apareçam algumas propostas de distribuição do livro, o que para mim é interessante. No entanto, quem fez o livro virar uma realidade foram as pessoas interessadas no projeto: membros da comunidade Zine (revista sobre música editada pelo próprio autor), amigos, entusiastas, meus seguidores nas redes sociais etc.

Os marcos

Tropicalia ou Panis et circencis

Araújo utilizou o disco-manifesto como um marco zero da música psicodélica no país. O álbum reuniu Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil, Nara Leão, Os Mutantes e Tom Zé. Vanguarda e pop em um mesmo LP, lançado no ano das revoluções de costumes.

Ronnie Von
Primeiro álbum psicodélico dos três lançados pelo príncipe da Jovem Guarda, o disco foi responsável por provocar em Araújo o desejo de pesquisar sobre a psicodelia brasileira. Fora de catálogo por décadas, voltou em edição de vinil de 180 gramas, áudio remasterizado e arte da capa original.

Paêbirú: Caminho da montanha do sol, de Lula Côrtes e Zé Ramalho
Disco que encerra o livro. Um dos mais raros e mitológicos álbuns da psicodelia brasileira, lançado em 1975. Nele, a dupla abusa do experimentalismo e da fusão de gêneros.