Não deixe o brega morrer Desprezado pela crítica e esnobado pela intelectualidade, gênero musical surgido nas periferias do Recife é destrinchado em livro de pesquisador pernambucano

Fellipe Torres || Tiago Barbosa
edviver@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 19/08/2017 03:00

O cantor pernambucano Reginaldo Rossi pregou durante toda a carreira um mantra para confrontar as críticas recorrentes à qualidade das composições responsáveis por torná-lo majestade do brega: música boa é aquela decorada e cantada pelo povo, teimou o Rei. O atalho para a garganta e a memória popular consistia no emprego de palavras menos rebuscadas e mensagens endereçadas diretamente ao coração. A necessidade constante de tentar provar o valor cultural do gênero namorado pela massa, mas desprezado pela crítica e esnobado pela intelectualidade, é um indicativo de como o Brasil tem se recusado a abençoar a manifestação artística nascida das classes menos favorecidas e pontuada pelas experiências afetivas do homem comum. Na terra natal de Rossi, o desprestígio social rebaixou o brega à condição de pária da música: ausente das políticas governamentais, associado à cozinha (embora consumido e não assumido pelos donos da casa) e carente de documentação.

Sob olhares de desaprovação de seus pares acadêmicos, o jornalista, pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco Thiago Soares tem problematizado a invisibilidade do gênero musical e, por conseguinte, jogado luz sobre aspectos da manifestação popular com mais de 50 anos de existência. O esforço originou uma série de artigos publicados nos últimos anos, agora sistematizados no livro Ninguém é perfeito e a vida é assim (OutrosCríticos, R$ 15), cujo título, não por acaso, ecoa conhecido refrão de um hit do Conde do Brega, discípulo de Reginaldo Rossi hoje esquecido.

A obra delineia questões relativas ao sistema produtivo do ritmo, como a efemeridade, pelo fato de não estar centrado em álbuns fonográficos, e a capacidade de criar ídolos nas periferias da capital pernambucana. Mais adiante, uma abordagem geográfica analisa como a música é consumida em diferentes espaços. Se, de um lado, há os bailes frequentados por figuras como “cafuçus”, “piriguetes” e “novinhas”, de outro existe também a fruição caricata do ritmo em festas descoladas de classe média, não raro embaladas pelo chamado “brega universitário” - movimento de apropriação da estética do gênero musical representado por bandas como Faringes da Paixão, Tanga de Sereia e Victor Camarote & Banda Arquibancada.

Na tentativa de interpretar os momentos ou movimentos do brega, Thiago Soares propõe uma categorização em três “eixos estéticos”, a começar pelo disco de estreia de Reginaldo Rossi, em 1966, ainda sob influência da Jovem Guarda. O reinado do cantor ganha tons românticos na década de 1970 e se torna cada vez mais pontuado pela performance, configurando espécie de cânone para o gênero. Em uma segunda fase, ganha força a representação feminina, simbolizado pelo hit Amor de rapariga e, em uma leva mais recente, a “funkização” dá vez a MCs como Sheldon, Boko e Troinha. O livro tem prefácio escrito por Micael Herschmann, autor de Abalando os anos 90: Funk e hip-hop, globalização, violência e estilo cultural, e é ilustrado por ensaio fotográfico de Chico Ludermir feito em festas de brega da capital pernambucana.

Serviço

Ninguém é perfeito e a vida é assim:
A música brega em Pernambuco, de Thiago Soares
Páginas: 190
Preço: R$ 15

Lançamento do livro, exposição fotográfica de Chico Ludermir, exibição do curta-metragem Estás vendo coisas, de Bárbara Wagner e Benjamim de Burca, e debate com Jeder Janotti Jr., Fernando Fontanella, Chico Ludermir e Thiago Soares
Quando: quarta-feira, 23 de agosto
Onde: Sexto Andar, Edifício Pernambuco (Av. Dantas Barreto, 324, Santo Antônio)
Quanto: gratuito 

Triângulo do brega

Pesquisador delineia a cena musical de Pernambuco em torno de três eixos

Masculino-galanteador

TEMÁTICA
O homem corteja a mulher em narrativas de ultra-amor romântico, de forma exagerada, com insinuações sexuais e devires etílicos em torno das situações criadas

SONORIDADE
Ecos da Jovem Guarda e da seresta, do uso em excesso dos teclados e dos vocais bastante incisivos. Canções importantes: Garçom, A raposa e as uvas (de Reginaldo Rossi), Garotinha linda (Labaredas), A vida é assim (Conde do Brega)

PERFORMANCE
Reginaldo Rossi é um marco ao se inscrever como uma figura cujo espetáculo se dá na maneira como ele conduz a sua própria relação entre a vida e a obra

CIRCULAÇÃO
Rádios populares e programas de televisão, como A hora do Chau, com Jorge Chau, Programa Paulo Marques e toda a linhagem de programas de auditório da TV pernambucana

Feminino-romântico  

TEMÁTICA
No segundo momento da música, a mulher responde ao homem, luta por amor, sofre com infidelidade e com questões próprias do feminino

SONORIDADE
Presença de teclados, bateria e da tradição dos programas de áudio usados para corrigir vozes e arranjos. Forte relação performática com gêneros musicais como forró eletrônico e calypso. Canções como Amor de rapariga, Baby doll e Ânsia são significativas

PERFORMANCE
Cantoras como Michelle Melo, Palas Pinho, Elisa são marcos fundadores. Gênero segue com bandas como Musa do Calypso (Musa), Loira Marrenta, Sedutora

CIRCULAÇÃO
Ápice nos programas de auditório da televisão aberta pernambucana nos anos 2000, como Tribuna show, Muito mais, Tarde legal

Masculino-provocador

TEMÁTICA
Homem “atiça” e provoca a mulher, em embate com flerte, sexualidade, jogos de sedução e poder. Imaginário do motel, da cultura digital, ostentação integram as performances

SONORIDADE
Presença marcante do teclado “ataca” o ouvinte, com sonoridade aguda e referências à música latina dançante (timba, reggaeton), mas também com o funk carioca. Destacam-se faixas como Novinha tá querendo o quê?, Estilo panicat, Balança

PERFORMANCE
Artistas como os MCs Sheldon, Metal, Cego, shevchenko, Elloco e Troinha (com trabalhos gravados por outos artistas) se configuram no contexto

CIRCULAÇÃO
Marcadamente digitais, ambientes como Palco MP3, redes sociais como Facebook e blogues são o principal lugar de disseminação. Aplicativo WhatsApp e as redes sociais facilitam a distribuição

Entrevista - Thiago Soares //  pesquisador, professor e escritor

“O governo colocou o brega sob o tapete”


Por que há negação social ou depreciação de manifestações culturais cuja essência atravessa o melodrama? Por que há “incompatibilidade” entre elas e a definição de cultura? O que temem os cânones?
Coloco o brega e as expressões populares como sendo expressões do melodrama. Sempre foram lidas como expressões banais. Não é alta cultura, não é mú sica erudita... Ela fala de questões existenciais do povo, do dia a dia, do amor rompido, da bebedeira, da gaia. Isso sempre foi visto como expressões menores. Shakespeare fazia teatro popular besteirol na Inglaterra e, hoje, é um clássico, virou grande cânone. O cânone é esse lugar de eleição de determinados elementos que refletem a cidade, o país, refletem uma música. A música pernambucana sempre foi pautada por uma ideia de cânone ligada a elementos folclóricos, ou por gêneros musicais mais canônicos dentro da música de massa, como o rock e o hip hop. Ao brega sempre coube o lugar de ser o outro. Quando se observa o cânone, quase sempre é um conjunto de exclusões. É branco, heterossexual, masculino. A universidade é masculina. A gente não tem saberes sobre mulheres, negros. Por isso que é importante política de cota, de inclusão, bolsa para pobres, de escola pública, porque eles precisam de voz. Fala-se sobre essa incompatibilidade da cultura com o fazer da academia, mas a academia muda. Esse livro sobre brega seria impossível há dez anos. As coisas vão entrando, e é preciso que haja negros, mulheres e transexuais na universidade, porque essas pessoas mudam a paisagem social.

O que significa o distanciamento intelectual dos mais abastados e, ao mesmo tempo, a concessão ao brega nos momentos de lazer? É o peso da divisão entre a casa-grande e a senzala, ricos e pobres?
No momento em que a gente vê os playboys de Boa Viagem, as menininhas brancas, a galera descolada indo para festas de brega, consumindo brega, a gente tem um embaralhamento dessa noção estanque de casa-grande e de senzala. Ao mesmo tempo, é um embaralhamento tensivo - não estou, aqui, desprezando a tensão racial, a tensão de classe, as formas de fruição dessa música pela classe média, que muitas vezes estereotipa, lê de forma excessivamente humorística a música de pobre. Isso, na verdade, me parece que está dentro de um conjunto de tensões justamente porque casa-grande e senzala não estão separadas. No livro, faço uma leitura geográfica. Recife é uma das menores capitais em extensão urbana no Brasil. Significa dizer que é uma capital extremamente vertical, mas muito pequena. A gente é muito permeado pela periferia, tem bolsões periféricos em Boa Viagem, tem favela dentro de Casa Forte, então essa distância entre a casa-grande e a senzala, entre os bairros ricos e pobres, é muito problematizada. A gente é o tempo todo interpelado pela música do pobre, feita na periferia. A política do brega é a da alteridade. A gente precisa enxergar essas pessoas, ver que o Recife não é uma bolha. Essas pessoas vivem e se expressam, seja no ônibus, seja na cidade. A gente não tem como controlar isso. É uma dinâmica urbana. Para mim, a política que o brega enseja é a de lidar com o outro e entendê-lo.

Como você vê a relação do poder público com o brega?
O governo de Pernambuco sempre colocou o brega embaixo do tapete. Nunca olhou com carinho e com destacamento, reconhecendo a relevância que o movimento musical tem no estado. Isso tem a ver com a história da política cultural de Pernambuco, que sempre foi muito calcada nos interesses armoriais, de um olhar intelectual sobre a cultura popular, mas sempre um olhar atravessado, meio museificado. Faço uma crítica muito pontual ao trabalho de Ariano Suassuna, que olhava o popular a partir de uma retranca folclórica e histórica. A partir dos anos 1980 e 1990, com a entrada do manguebeat, isso se relativiza um pouco. Mas o manguebeat também foi incorporado como uma dinâmica de política cultural do estado, a partir da fusão de ritmos tradicionais, como maracatu, caboclinho e ciranda, com ritmos mais consagrados, mais pops, como rock e hip hop. É claramente o que Chico Science e Nação Zumbi e Fred Zero Quatro fizeram. Ao longo desse tempo, o brega sempre esteve presente, fora das políticas do estado. Reginaldo Rossi e Banda Labaredas sempre estiveram produzindo. Alguém pode achar que o brega não precisa da chancela do estado, mas a música de periferia precisa, sim, de políticas específicas. A gente não pode tratar os músicos de brega como tratamos os músicos escolarizados da universidade. Mas isso também não significa que a gente não precisa fazer política pública para eles. É preciso perceber essas figuras como criadoras. Michelle Melo, Sheldon, Conde do Brega... Eles são criadores, têm uma poética, eles falam de amor, de romantismo, e isso está muito presente no nosso imaginário. É preciso dar suporte a artistas de brega que estão no ostracismo. Como é que a gente dá uma bolsa de apoio a figuras do folclore, a rainhas do maracatu - que são importantes e que devem ter apoio do estado -, mas não apoiamos figuras do brega?

Quais os primeiros passos para mudar essa realidade?
O livro está saindo pela chancela do estado, pelo Funcultura, um edital importante do governo. Em contrapartida, a gente quer fazer um conjunto de ações em bibliotecas públicas, na periferia, para poder dialogar. Espero que este seja um primeiro momento, pois não se faz política cultural sem que haja sujeitos para pensar, sem que haja avanços na economia, na política. O deputado estadual Edilson Silva está encampando uma campanha para legitimar o brega como expressão cultural do estado. É inaceitável um estado supor que um tipo de música feita por um conjunto de habitantes não deva ser reconhecido como expressão cultural. Não cabe ao estado dizer o que é ou não é expressão cultural. A expressão existe, as pessoas fazem ela, e o estado precisa reconhecê-la. Isso é uma visão reducionista, segregacionista, que cria um apartheid cultural na cidade e no estado, algo muito nocivo. O que cabe ao estado é acolher essas expressões e colocá-la dentro de um espaço muito importante. Para isso, hoje há a Rádio Frei Caneca, uma rádio que não toca brega porque diz que é uma música que sexualiza, que exclui, que fala de novinha. Mas essa é só uma parte do brega. Não se pode colocar uma visão generalista, que não pensa a complexidade do gênero musical.

Como enxerga o surgimento dos MCs no brega pernambucano?
Houve um rompimento interessante no brega com o aparecimento dessas figuras, Sheldon, Boko, agora Troinha. Eles são importantes porque trouxeram uma ideia de que o brega pode ser brasileiro, a partir do momento em que “funkizam” o brega. Mostra que o brega está vivo. O livro se encerra na “funkização” do brega, mas dá margem a pesquisas que vão pensar outras questões, da masculinidade, a questão de gênero, da novinha, da objetificação da mulher. É preciso fazer pesquisa crítica sobre isso. Também não sou ingênuo. O brega tem muito problema - de representação, de criação de estereótipo - e isso é bom para pesquisa acadêmica. Isso faz dele potente.

Você divide a cena brega em três eixos bem claros e enquadra o primeiro a partir do trabalho de Reginaldo Rossi. Qual a importância do cantor para a música brega e como ele influenciou as gerações?
Se a gente pode pensar na formação de um cânone do brega, sem dúvida é Reginaldo Rossi. Ele é a grande figura que inaugura o que a gente chama de brega no Recife. Em um primeiro momento, era a figura da Jovem Guarda em Pernambuco, como se fosse nosso Roberto, Erasmo Carlos. Era o cantor romântico das multidões. Com o surgimento da música cafona dos anos 1970, com Odair José, Fernando Mendes, ele se torna representante dessa música em Pernambuco. Depois, vai servir de cânone para um conjunto de figuras importantes. Existe uma sombra performática de Reginaldo que paira sobre todos os cantores românticos do estado. Adilson Ramos, Labaredas... A figura do Conde do Brega, com a camisa desabotoada, o peito aparecendo, o colar, tem toda uma relação performática que é forte com Reginaldo. Sempre que um cantor de brega de Pernambuco vai cantar, Reginaldo Rossi está presente ali no corpo, na voz, na performance.