Química potente Há dez anos, estreava o revolucionário seriado Breaking bad, sobre a transformação de um pacato cidadão em traficante após descobrir um câncer, interpretado por Bryan Cranston

texto: Fernanda Guerra
fernanda.guerra@diariodepernambuco.com.br

Publicação: 20/01/2018 03:00

Breaking bad revolucionou a televisão mundial. E o reconhecimento permanece intacto após dez anos da estreia, completados neste sábado. A produção do criador e showrunner Vince Gilligan ainda é vista como uma obra-prima. A genialidade foi constatada em premiações como Emmy Awards e Globo de Ouro e na inclusão no Guinness Book como a série mais bem avaliada pela crítica e pelo público de todos os tempos. Ao longo de cinco temporadas, impressionou pela qualidade cinematográfica, com atuações impactantes, personagens fora do maniqueísmo - característica comum na televisão -, um protagonista anti-herói, roteiro bem executado e fotografia primorosa. Da paleta de cores a mensagens subliminares em cenas, títulos de episódios ou créditos, a riqueza de detalhes comprova a inteligência da produção.

Antes de chegar à TV, o seriado recebeu sucessivas negativas até colher os frutos do sucesso. No período anterior ao aval do canal AMC, que na época transmitia o seriado Mad men (2007-2014), a HBO sequer respondeu sim ou não ao projeto apresentado por Gilligan, a FX preteriu Breaking bad para dar lugar a Dirt, estrelada por Courteney Cox (Friends) e cancelada após duas temporadas, e executivos do TNT temiam a metanfetamina como elemento circunstancial da trama, que narraria a história de um pacato professor de química que, após ser diagnosticado com câncer, produziria a droga para propiciar um “futuro conforto” à esposa grávida e ao filho adolescente com paralisia cerebral.

A série nasceu com um episódio piloto de tirar o fôlego e apresentou uma evolução narrativa e de personagens que cresceu paralelamente à audiência. O primeiro episódio foi visto por 1,4 milhões de pessoas, enquanto o último atraiu a atenção de mais de 10 milhões de espectadores. Geralmente, o caminho é inverso em produções televisivas, que perdem o público à medida que a série avança.

Com o desenrolar do seriado, a mutação dos personagens foi algo inovador na TV. Diferentemente de séries nas quais as características dos papéis são expostas com clareza logo no primeiro momento, todos eram complexos e sofreram transformações ao longo da história. Do protagonista aos secundários, nenhum era claramente bom ou ruim, mas  desenhado com qualidades e defeitos mais fáceis de provocar identificação (ou não) com o público.

A presença do anti-herói como elemento central não foi inédita, mas ainda não era comum. Séries como Família Soprano (HBO) e Mad men (AMC), que estreou um ano antes de Breaking bad, já apresentavam personagens do gênero. Contudo, aumentou a recorrência de tramas com esse viés, a exemplo de séries como O Justiceiro, Inumanos, Boardwalk Empire e Homeland.

De um tradicional “homem de família”, Walter White, interpretado por Bryan Cranston, terminou como um produtor de metanfetamina e traficante, cujo codinome era Heisenberg. O vilão-protagonista conquistou o público, mas também dividiu opiniões em relação às atitudes tomadas no enredo. Jesse Pinkman, incorporado por Aaron Paul, era um desajustado viciado em drogas e pequeno traficante no início, mas mostrou ter mais sensibilidade que White. Mãe dos dois filhos de White, Skyler, vivida por Anna Gunn, também apresenta fragilidade. Ela trai o marido com o chefe e se torna cúmplice de White ao fazer lavagem de dinheiro.

A escolha do elenco foi um acerto. Foi em Breaking bad que a popularidade dos atores se consumou. Bryan Cranston conquistou três prêmios Emmy de Melhor Ator em Série de Drama consecutivos, fato que permanece inédito na trajetória da premiação, considerada a cerimônia mais importante da TV. A atriz Kristen Ritter se tornou protagonista de Jessica Jones, série da Netflix com a Marvel.

Por trás da série

Conexões

A riqueza de detalhes coloca Breaking bad como um marco na TV, com pormenores e mensagens subliminares (easter eggs), muitas deles só foram compreendidos após o desfecho em 2013. A química é um elemento condutor da trama. Os créditos e vinheta são associados à tabela periódica, assim como o título, constituído pelos símbolos Br (bromo) e Ba (bário). O codinome Heisenberg é uma referência ao físico Werner Heisenberg, assim como o sobrenome de Hank Schrader, ao químico Gerhard Schrader. O número de episódios - 62 -  é similar ao samário, 62º elemento, utilizado no tratamento de câncer de White. A matéria está presente nas cenas que mostram a fabricação de metanfetamina ou quando ele transforma o conhecimento na área em elemento provocador da morte de adversários. O próprio Bryan Cranston aprendeu a cozinhar metanfetamina. No set, um ex-viciado colaborou com a atriz Kristen Ritter (Jane Margolis), que aprendeu a produzir heroína para dar mais veracidade à namorada de Pinkman e vítima de overdose.

Cinema na TV

No currículo, Vince Gilligan tem episódios marcantes de Arquivo X, na qual atuou como roteirista em alguns momentos. Em Breaking bad, a fotografia cinematográfica do seriado foi um dos pontos altos da produção. A posição de cada personagem diante das câmeras e o significado das cores como componente narrativo, por exemplo, mostram o cuidado com a concepção. A paleta de cores é um elemento de destaque na obra. Em cenas com carga dramática maior, os tons predominantes são mais sombrios. Em momentos de densidade menor, tonalidade mais clara. Como exemplo principal, o figurino de Walter White na série começa com trajes mais claros, enquanto professor e homem de família. Conforme vai se transformando em Heisenberg, as roupas são mais escuras. Da mesma forma, Skyler aparece com roupas em azul claro nas primeiras temporadas e, posteriormente, adota roxo e outras cores mais fechadas. Além do figurino, o detalhe é marca da concepção do cenário. Outro ponto de proximidade com o cinema é que a série adotou uma narrativa não linear. Alguns episódios eram introduzidos com cenas de período avançado, como é o caso do piloto, explicada ao longo do capítulo em flashback.

Sobrevida da série

Jesse Pinkman (Aaron Paul) está no rol de papéis que teriam participação curta, mas, devido ao carisma e à aprovação do showrunner, continuou na trama até o final. O fato é apenas uma das posições certas da obra. O fim de Breaking bad ocorreu no auge da série. O desfecho, portanto, provocou o lamento dos fãs da produção. Em premiações, a trajetória foi louvável: 118 prêmios e  230 nomeações, incluindo dois troféus do Globo de Ouro e 16 do Emmy. Vale lembrar que ela concorria com Mad men. Para preencher a lacuna, Vince Gilligan e o produtor-executivo Peter Gould lançaram um spin-off da obra, Better call Saul, ambientado seis anos antes dos acontecimentos da obra original. No Brasil, a série é exibida pela Netflix, um dia após o lançamento do capítulo nos EUA. A quarta temporada - ainda sem data de estreia confirmada - começou a ser gravada neste mês. Para a alegria dos órfãos, personagens como Gus Fring (Giancarlo Esposito) e Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) estão na trama protagonizada por Bob Odenkirk, intérprete do advogado Saul Goodman em Breaking bad.