Apocalipse aos sussurros Surpreendentemente terno e comovente, "Um lugar silencioso: Dia um" mostra o início da invasão dos alienígenas de audição poderosa pela perspectiva de Nova Iorque

André Guerra

Publicação: 29/06/2024 03:00

Lançado em 2018, Um lugar silencioso é uma ótima definição de estreia fora da curva: um projeto original comandado e estrelado por um diretor/ator (John Krasinski) de quem poucos esperariam uma virtuosa voz do terror. Contando a história de uma família que precisava sobreviver no silêncio de sua fazenda em um mundo pós-apocalíptico dominado por criaturas letais com super audição, o primeiro filme conquistou sucesso absoluto de crítica e bilheteria, o que, atrelado à eficiência do conceito, levou o estúdio a providenciar rapidamente a continuação, Um lugar silencioso: Parte II – lançado em 2021, com resultados igualmente excelentes de repercussão.

Agora sem Krasinski por trás das câmeras e sem a família liderada por ele e por sua esposa – nos filmes e na vida real – Emily Blunt, a franquia retorna com a prequela Um lugar silencioso: Dia um, que se passa em plena Ilha de Manhattan, em Nova Iorque, no dia em que a invasão dos alienígenas começou. Dessa vez, somos introduzidos a Sam (Lupita Nyong’o), uma poeta com câncer terminal internada em uma clínica de cuidados paliativos. Na breve visita a um espetáculo de marionetes na cidade, junto ao enfermeiro (Alex Wolff) e aos outros pacientes, ela presencia o caos se deflagrando no meio da multidão e, tentando manter protegido seu gato Frodo, conhece Eric (Joseph Quinn), estudante de direito que passa a acompanhá-la.

Pode ser uma armadilha para uma série cinematográfica, quando se parte de um conceito tão simples, querer se expandir e se explicar demais. Um lugar silencioso, até aqui, não caiu nessa. Apesar das mudanças do cenário e notável aumento da produção, os dois longas derivados do universo mantém a escala humana estabelecida pelo primeiro filme e possuem um cuidado evidente com a caracterização dos personagens, o que não significa renegar a sua natureza de cinema B, de filme de monstro. Esse equilíbrio entre a seriedade dramática e o entretenimento assumido do suspense está se tornando marca de honra da saga. E, agora com Dia um, que tinha todas as desculpas para construir um grande espetáculo de destruição (vide a escolha de Nova Iorque como ambientação), ela demonstra mais singeleza e intimismo do que nunca.

Michael Sarnoski – do aclamado drama indie Pig, com Nicolas Cage – substitui Krasinski na direção e, mesmo que siga a gramática básica de Um lugar silencioso, a mudança é perceptível. As câmeras de Sarnoski não tem a mesma fluidez de movimento ou os planos complicados que conectavam elegantemente duas ou mais situações em paralelo. O cineasta, inclusive, não explora visualmente como poderia as possibilidades de terror oferecidas pela premissa urbana, mas fica claro também o seu olhar sensível para a direção de atores e o tato bem especial com que deixa a câmera solta para captar interações espontâneas e emocionais. Há boas cenas de ação e tensão em Dia um, mas o fator ‘novidade’ com relação aos alienígenas já não existe, assim como qualquer ineditismo com relação à devastação de Manhattan no cinema – o que torna inteligente a decisão de basear o drama numa protagonista cujo objetivo é menos a sobrevivência e mais o aproveitamento dos seus decretados últimos momentos de vida.

Atriz de expressividade singular, vencedora do Oscar de coadjuvante por 12 anos de escravidão, Lupita dá conta de preencher essa personagem de nuances e ternura em menos de 90 minutos e com o mínimo de diálogo – até mais do que seu talento precisa. Com o gato inseparável e um arco comovente de redescoberta de pequenos prazeres e memórias em meio à destruição da cidade, ela empresta a Um lugar silencioso uma pausa de poesia e contemplação antes do apocalipse implacável seguir adiante.