A arte de curar "Senhora dos Nossos Sonhos", espetáculo sobre Nise da Silveira, médica que humanizou o tratamento de doentes mentais no Brasil, entra em cartaz hoje e amanhã no Janeiro de Grandes Espetáculos

Allan Lopes

Publicação: 15/01/2025 03:00

A arte é a linguagem universal que nos conecta a sonhos, sentimentos, aprendizados e pertencimento. Nise da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra, provou que a arte também é um caminho para a cura. Ao negar o uso de eletrochoques nos tratamentos, Nise abriu a mente dos colegas e o coração dos pacientes quando criou ateliês de arte dentro dos hospícios em plena década de 1940. Seu legado na luta antimanicomial serve de inspiração para o espetáculo documental Senhora dos Nossos Sonhos, que está na grade do Janeiro de Grandes Espetáculos e será encenado hoje e amanhã, sempre às 19h, no Teatro Capiba, no Sesc Casa Amarela, Zona Norte do Recife.

Machado de Assis, no clássico O Alienista, questionava os limites entre sanidade e loucura com a famosa frase: “De médico e louco todo mundo tem um pouco.”. Nise da Silveira, admiradora de Machado, dizia algo semelhante: “Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Felizmente, nunca estive cercada de pessoas muito ajuizadas.”  Essa perspectiva humanista é a tônica de Senhora dos Nossos Sonhos, idealizada por Gonzaga Leal e dirigida por Marcondes Lima, que destrincha a mulher antes da grande cientista alagoana.

A peça explora como as crenças e vivências de Nise influenciaram sua compreensão da arte como um meio de expressão e cura. “Mostrar um pouco mais sobre a Dra. Nise, como eu costumava chamá-la, é revelar um retrato fiel de uma época, um espírito precioso e bem lapidado, que reflete em suas múltiplas facetas um período turbulento da história brasileira”, explica Gonzaga, que foi amigo pessoal de Nise, em conversa exclusiva com o Viver. Além de cantor, produtor e diretor artístico, ele também é terapeuta ocupacional e atribui seus conhecimentos à convivência com a mestra, que teve grande influência em sua formação. “Me mostrou o caminho das pedras e que contribuiu para moldar a pessoa, o artista e o terapeuta que sou hoje”.

A paixão de Nise pelas artes encontra expressão para além das teorias e textos acadêmicos, sendo retratada em exposições visuais, em suas obras O Mundo das Imagens e Cartas a Spinoza, e no filme Nise: O Coração da Loucura (2015), dirigido por Roberto Berliner e estrelado por Glória Pires. A peça Senhora dos Nossos Sonhos, por sua vez, tem Ceronha Pontes no papel principal. Gonzaga celebra a chance de dividir mais um trabalho com a parceira de longa data. “Compartilhamos uma cumplicidade tanto na vida quanto no palco. Ela é uma atriz que está sempre em busca de se encontrar e, sem esforço, transforma-se cada vez mais na atriz e na pessoa humana que realmente é. Isso me fascina e me toca de perto”.

Quando recebeu o convite para levar a sensibilidade e rebeldia da psicanalista aos palcos, Ceronha inicialmente hesitou, pois temia que o novo trabalho fosse interpretado como repetitivo. Ela se dedicou por um longo tempo a um solo sobre Camille Claudel, a artista francesa que passou os últimos 30 anos de sua vida em um manicômio. Mas o legado revolucionário de Nise ficou ainda maior aos olhos de Ceronha no momento que enxergou para além dos muros do hospital e viu a estudiosa, seus posicionamentos, seu humor, sua história, família, amigos e escolhas. “Me apaixonei completamente. E fui com medo mesmo”, revela.

Para a atriz, a médica se faz presente pela coragem e ternura que devolveu ao Brasil. “Não podia recuar diante de uma mulher como a Nise. Quis seguir com ela. E assim como ela sentia a mão do filósofo Baruch Spinoza segurando a sua, humildemente sinto a mão de Nise segurando a minha. Ela não me deixa só. É a força do afeto que move aquela mulher. Eu digo ‘move’ porque sim, ela vive, e está presente”. Ceronha a descreve com uma citação de Carl Jung (1875-1961), referência para Nise na psiquiatria. “Ela é a personificação da máxima do Jung: ‘Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.”

Gonzaga torce para que a peça possa repercutir no público com a mesma empatia que Nise tinha ao cuidar dos seus pacientes.

“Acredito que possa representar um verdadeiro ato de amor ao ser humano em sua condição frágil e ferida. É um exercício de esperança, uma busca por uma postura mais livre e enriquecedora diante deste experimento de infinitas possibilidades que é nossa passagem pelo mundo.” Nise dizia que o mal nunca deixará de existir. Que ela e seu legado, então, sejam eternos para enfrentá-lo.

Filha de um jornalista e de uma pianista, Nise Magalhães da Silveira nasceu em Alagoas, em um lar onde a liberdade se misturava à música, à arte e à poesia. Seguiu para a Bahia, onde se formou em Medicina e foi uma das primeiras mulheres do Brasil a conquistar esse feito, e depois se estabeleceu no Rio de Janeiro, rodeada por gatos, loucos e livros. Ela se considerava uma psiquiatra rebelde, sempre dizendo carregar um cangaceiro na pele, mas construiu uma obra baseada no amor.

Sua forma particular de entender ciência ganhou força no Centro Psiquiátrico Pedro II. Foi nesse ambiente que Nise teve contato com as práticas psiquiátricas da época, como lobotomia, eletrochoque e choque insulínico. Porém, rapidamente se afastou desses tratamentos e buscou alternativas mais humanas. Em 1946, fundou a Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (Stor), com o foco de encorajar os pacientes – ou “clientes” como ela gostava de chamar – a se expressarem através da arte.

Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ela ficou presa por dois anos acusada de envolvimento com grupos marxistas. Esse período se revelou o mais angustiante na preparação de Ceronha para a peça. “Ela não gostava de falar sobre isso, mas algumas coisas muito importantes ouvi da própria Nise, numa longa conversa que ela teve com Gonzaga e o saudoso Rubem Rocha Filho, e que foi toda gravada em vídeo. Ela procurava as palavras para dizer. Em poucas frases consegue dar a dimensão daquele horror.”  

O ateliê de pintura do Hospital do Engenho de Dentro foi inaugurado em setembro de 1946, e apenas quatro meses depois Nise promoveu a primeira exposição das obras. A partir desse momento, o reconhecimento dos trabalhos, tanto no âmbito da psiquiatria quanto da arte, cresceu, ganhando atenção de estudiosos e artistas. Desde então, quase que anualmente são realizadas exposições nacionais e internacionais com a produção dos frequentadores do ateliê.

Para ela, as portas da percepção se abriam de modo a transformar o mundo num espetáculo de vertiginosa complexidade e profundo vigor.

“Nise da Silveira era uma personalidade exemplar. Para ela se abriam as portas da percepção, de modo a transformar-se o mundo num espetáculo de vertiginosa complexidade, profundo vigor. Ela enxergava demais e o sofrimento lhe brotava da crispação de suas retinas expostas às agulhas de luz que saltam do selvagem coração da vida”, expressa Gonzaga em sua poesia.