Mapa de afetos e rebeldias
Novo disco da cantora Flaira Ferro se equilibra entre a força dos ritmos populares nordestinos e uma abordagem experimental
Allan Lopes
Publicação: 26/03/2025 03:00
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Há certas experiências tão intensas que os sentimentos parecem se libertar e passam a existir como entidades autônomas. Foi nesse estado de transbordamento que Flaira Ferro se encontrou após o nascimento de seu primeiro filho, Dom – quando a maternidade, em toda sua complexidade, exigiu voz. E a música surgiu não apenas como expressão, mas como ato de resistência. Durante o puerpério, a cantora pernambucana mergulhou na criação de Afeto Radical, seu novo álbum de estúdio, que será lançado nesta sexta-feira (28).
O título leva o nome de um conceito que Flaira absorveu após refletir sobre a gestação e os desafios do mundo contemporâneo, como aceleração da vida, padronização dos desejos e precariedade da indústria alimentícia. “Coloquei muito de mim nesse álbum, nas minhas inquietações e no meu desejo de enfrentar o mundo com tudo o que ele exige de nós. Mas ao mesmo tempo que é um trabalho que vem da minha vivência mais íntima, ele também busca se conectar com outras histórias”, afirma, em conversa exclusiva com o Viver.
Com Cordões Umbilicais (2016) e Virada na Jiraya (2019), Flaira construiu uma carreira pautada na ideia de que vulnerabilidade não é sinônimo de fraqueza. Em Afeto Radical, ela vai mais a fundo e reafirma que sua arte é, acima de tudo, um espaço livre, potente e original. “O disco transita por esse universo íntimo dos meus afetos, mas revela também a força que encontrei nas minhas fragilidades”, explica a artista.
Essa conexão entre pertencimento e resistência também impulsiona a sonoridade do novo trabalho. Com uma musicalidade arrojada, Flaira expande a energia do frevo e o batuque do maracatu para um campo mais experimental, carregando nuances de rock e pop. “Meu desejo não é apenas valorizar essa cultura por um viés turístico”, argumenta. “Não penso em outra forma de criação que não passe por essa relação com a musicalidade que molda minha história, minha corporalidade, minha gestualidade e minha subjetividade”.
Segundo ela, não se trata de uma desconstrução ou de uma tentativa de remodelar nossas tradições, mas sim de dar continuidade à sonoridade que já existe. “Acredito profundamente que o frevo é uma fonte criativa inesgotável, ilimitada e sempre em movimento, por sua própria natureza. É uma cultura viva, dinâmica, que reflete o nosso povo e o nosso tempo. Por isso, sua renovação e atualização são inevitáveis”, afirma, categórica.
Tanta intensidade não caberia em uma só voz. O disco conta com colaborações de grandes nomes, como o conterrâneo Lenine, na faixa-título Afeto Radical, e a poderosa Elba Ramalho, que colore Os Ânimos com seu timbre majestoso. “São vozes que dialogam com minha trajetória e potencializam o que o álbum quer expressar”, destaca Flaira. Entre os contemporâneos, Laís de Assis marca presença na música Sabe, que também conta com arranjos de cordas da carioca Dora Morelenbaum, ex-Bala Desejo. Vanessa Moreno, Juliano Holanda, Isabelly Moreira, PC Silva, Isabela Moraes, Roseana Murray e Lucas Dan, marido da cantora, também colaboram. E, assim, o disco se faz radical no afeto, pernambucano na raiz e universal na voz.