PERFIL » De volta ao anonimato Dois meses depois de salvar Helena Brennand e ganhar a fama momentânea do heroísmo, Paulo segue seu instável trajeto entre o crack e uma pneumonia que não cessa

André Duarte (texto)
Helder Tavares (fotos)

Publicação: 03/02/2013 03:00

Em 37 segundos, Paulo Henrique de Brito, 19 anos, saca da memória o percurso que o desviou do anonimato: “Eu estava na pracinha lanchando, porque uma mulher pagou um cachorro-quente pra mim. Era na faixa de meia-noite. Aí eu vim nessa direção pra usar (crack). Quando eu ia usar, só vi o carro passando rápido. Quando olho pra frente, ouço aquela zoada. Era um carro caindo no canal. Um Polo branco, quatro portas. Aí eu tirei a camisa, pulei no canal, tirei a gilete da boca, estourei o vidro com uma pedra, cortei o cinto e tirei ela”. Um roteiro com pitadas de heroísmo que não aprumou um centímetro sequer o trajeto instável deste morador de rua de Boa Viagem. Coube a ele tirar a empresária Helena do carro, àquela altura parcialmente tomado pela água de esgoto, e protagonizar o noticiário local como o garoto que apareceu da escuridão para salvar a vida de uma das filhas do artista plástico Francisco Brennand.

Dois meses depois, a rotina de Paulo segue indiferente àquela madrugada de 7 de dezembro. Continua a dormir ao relento, geralmente em colchões velhos em alguma esquina do quadrante entre as avenidas Visconde de Jequitinhonha e Fernando Simões Barbosa, que margeiam o canal de Boa Viagem. No miolo do quarteirão fica a Favela do Veloso, encurralada por prédios de classe média, armazéns de construção e restaurantes que abastecem o paladar da Zona Sul. Sem barraco pra chamar de seu, elegeu aquela comunidade como base de sobrevivência e autodestruição. Costuma vagar no seu entorno para fazer bicos como flanelinha e lavador de carros: o dinheiro obtido desova integralmente na compra de pedras de crack.

É assim há quatro meses, desde que chegou com a roupa do corpo, as sandálias achadas — uma de cada cor — e o inseparável boné. Fez novos amigos, ganhou respeito dos moradores da favela pelo jeitão tranquilo. Antes mesmo de desafiar a falta de saneamento e tomar para si a tarefa do resgate, os comentários na comunidade convergiam para a descrição de um rapaz de boa índole, “que não faz mal a ninguém”, exceto a si próprio. Até esta entrevista para a Aurora, não fazia a menor ideia de quem era o pai da moça que socorreu no fim do ano passado. “Só sabia que era alguém importante”.

No começo do semestre, ainda morava com os pais e nove irmãos na praia de Carne de Vaca, em Goiana. Tirava sustento da água barrenta do Litoral Norte, no arrasto de um cotidiano saudável ajudando o pai, pescador, e a mãe, marisqueira. Trabalhava, namorava, estudava e, como muitos de sua idade, desafiava o tédio da maresia nas festas da cidade. Numa delas fumou a primeira pedra mesclada de crack e, como quem navega redemoinho em mar revolto, tomou o rumo de um espiral previsível.

Com o vício soprando forte na popa, em questão de semanas passou a vender objetos de casa até tomar a decisão de desertar do convívio familiar “para não ver a mãe sofrendo mais”. Nunca mais se falaram, e Paulo foi morar de favor em Abreu e Lima, de onde saia para vender ostras na praia de Piedade ou pilotar um carrinho de batata-frita. A mudança sem direito a mala para Boa Viagem não foi o que se pode chamar de escolha. “Foi aqui que eu fumei a primeira pedra grandona (de crack). Nunca mais saí”.
Pouco mais de um mês após avistar o Polo branco desgovernado atravessar a mureta de concreto que protege o canal, aparece com olhos amarelados, algumas marcas no rosto e dentes manchados que lhe conferem alguns anos a mais na aparência. Estava, garante, há quatro dias sem usar crack e manifestava o desejo de permanecer de cara limpa, pelo menos das pedras.

Paulo é dono de um sorriso franco e econômico, que só resolve aparecer ao lembrar da ceia farta que provou no último revéilon, quando ganhou guarida no barraco de uma espécie de família adotiva. Foi encontrado chorando na entrada da favela pela comerciante de roupas Maria da Luz, 42, e pelo marido Carlos André, 35, naquela que seria a sua primeira virada de ano sozinho. Integrado aos filhos do casal, se esbaldou na mesa com torta salgada, surpresa de uva, refrigerante e panetone. Tomou um banho e dormiu um sono pesado, daqueles que a rua não permite. “Não tem o que falar dele. É uma ótima pessoa”, diz Maria, a quem o flanelinha já chama de “minha mãe”.

Ao contrário dos amigos que dividem com ele as calçadas de Boa Viagem, Paulo não é arredio e fala do vício com uma naturalidade desconcertante. Já fumou 20 pedras num único dia, o que lhe custou R$ 200. Além de conter a “nóia” devastadora, passou a ter mais um problema sério: administrar a dívida com os traficantes e, por tabela, garantir a própria sobrevivência. Há bem pouco tempo devia R$ 120, mas conseguiu pagar R$ 100. Os outros R$ 20 pendentes esperava conseguir com algumas lavagens de carro.

“De vez em quando eu passo por eles e levo um tapa na cabeça”, diz, falando de uma advertência dos credores do tráfico sobre o atraso no pagamento. Quando o dinheiro falta, o ex-pescador não hesita em fisgá-lo numa fonte arriscada. É quando recorre a pequenos furtos a supermercados do bairro. “Não sou santo, não. Nunca roubei ninguém na rua, mas no mercado um desodorante eu pego. É mais nesses mercados grandes. Dão um vacilo e eu pego um uísque (para vender depois). Não vou mentir”.

Pouco depois do Natal, uma pneumonia diagnosticada na infância voltou em forma de uma dor aguda no pulmão, que o levou ao chão. Caído na calçada, foi ajudado por Maria da Luz, que ligou para o SAMU e fez um apelo à atendente, na esperança de a ambulância chegar mais rápido: “Olha, é aquele neguinho que salvou a filha de Brennand”.

Naquela noite, Paulo foi levado a duas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), tomou um antibiótico e recebeu alta. A receita, que ele entregou a terceiros para não perder, o obriga a tomar um comprimido de Cefalexina a cada oito horas, além de outro medicamento que não lembra o nome, justamente por não conseguir comprá-lo.
Recebeu ainda outra trinca de recomendações que nunca cumpriu por razões óbvias: “Não posso tomar água gelada, andar descalço e nem dormir na frieza”, diz o paciente. “É justamente tudo o que ele faz. Quem já viu alguém morar na rua e não pegar frieza”, emenda Maria da Luz, numa conclusão evidente, que outra frieza, a do tratamento médico, não diagnosticou.

Paulo costuma receber visitas de uma equipe do Atitude, como foi abreviado o nome do Núcleo do Programa de Atenção Integrada a Usuários de Drogas de Jaboatão dos Guararapes. Sem data marcada ou periodicidade, os profissionais da rede pública costumam aparecer numa Kombi e o procuram nas ruas até achá-lo. Se for de sua vontade, é levado a uma casa do programa, onde dorme alguns dias pra ficar longe do crack . “Gosto de lá. Eles dão cinco refeições por dia”, elogia.

O flanelinha decidiu evitar as drogas pesadas para tomar os remédios contra a pneumonia, mas não há sincronia nos tratamentos do vício e da doença. “A fissura vem e passa”. Na prática, é como se incorporasse dois pacientes diferentes, o que estaciona as melhorias efetivas e impulsiona a eterna gangorra de recaídas.

Enquanto nos leva até local do acidente através de um beco da Favela do Veloso, Paulo cruza com uma moradora antiga, que comenta indignada, em voz alta: “Ele salvou a menina da maré e não deram nada”. Ele lembra de ter sido empurrado pela motorista — ainda nervosa — no momento que a resgatou no carro depois de cortar o cinto de segurança com a gilete que guardava na boca. No dia seguinte ao episódio, quando deu entrevistas à imprensa, foi questionado por repórteres sobre o que fazia com uma lâmina afiada debaixo da língua. Titubeou na resposta, difícil de ser explicada: “Era pra cortar maconha. Pra render mais”.

Após contato por telefone, Helena Brennand nos enviou um texto sobre o acidente. No e-mail de cerca de 20 linhas, a empresária descreve o que lembra daquela madrugada em que perdeu o controle do carro. “Para quem sofre o acidente a visão é totalmente diferente. Eu sequer sabia ter sido salva até a tarde do dia seguinte. Minha lembrança tátil me fazia pensar ter saído do carro sozinha”. No segundo trecho, ela discorre sobre o “destino” que a levou a ser salva e agradece ao morador de rua sem comentar o porquê de não procurá-lo depois. “Acredito que, no momento em que ele se jogou, sem esperar por nada, sem pensar, se mostrando apenas como humano, condição de todos nós, algo em sua vida deve ter mudado. Acredito no ato de plantar e colher, no cálculo simples do universo. Espero do fundo do meu coração que ele possa ainda hoje estar melhor do que antes”.

Há duas semanas, Paulo voltou a Carne de Vaca de ônibus para pegar a sua certidão de nascimento que estava na casa da família. Como não tem carteira de identidade nem CPF, precisava tirar os documentos pra disputar um emprego numa empresa do Porto de Suape, indicado por um amigo. Na versão que soltou no dia seguinte, quando voltou a Boa Viagem, encontrou a casa da família fechada. Segundo ele, os comentários dos antigos vizinhos davam conta que os pais teriam se mudado com os irmãos para um lugar desconhecido. O telefone celular que Paulo forneceu da mãe biológica não funciona. O projeto de pendurar no pescoço um crachá com sua foto 3x4 foi suspenso. Por hora e sem previsão de mudança, ainda é uma flanela que repousa nos ombros.

“Não sou santo, não”, diz o ex-pescador, que hoje faz bicos para bancar o vício.