Palavra a serviço da liberdade
Mais atuais do que nunca, crônicas radiofônicas de dom Helder Camara serão disponibilizadas no site da Cepe a partir de novembro
JAILSON DA PAZ
jailson.paz@diariodepernambuco.com.br
Publicação: 27/10/2018 03:00
Era 17 de novembro. 1978. Naquela data, quando o governo do general Ernesto Geisel se aproximava do fim e a censura imposta pelos militares já abrandava em relação a dom Helder Camara, o arcebispo de Olinda e Recife lia na Rádio Olinda, emissora da arquidiocese local, uma das suas 2.549 crônicas levadas ao ar no programa Um olhar sobre a cidade. O sacerdote decidiu tocar em um dos assuntos que, embora passada a fase de maior repressão, assombrava os brasileiros: a tortura. Essa crônica integra o acervo do programa de rádio a ser disponibilizado em novembro no site www.cepe.com.br, da Companhia Editora de Pernambuco (Cepe).
O programa daquele 17 de novembro começou no horário de sempre. 6h. E com a frase que se tornou bordão: “Meus queridos amigos”. Dom Helder sabia que a sua mensagem ia além dos católicos e, diante de um país com trincas da violência política, resolveu tocar na ferida. Disse abertamente que o povo brasileiro era contra a tortura. “Parece-nos absurdo e imbecil fazer de conta que se acredita no que é arrancado através da tortura. Quem pode garantir o que acaba se dizendo do próprio pai e da própria mãe se a tortura está em cima da gente, exigindo que a gente diga absurdos da própria mãe ou do próprio pai?”, questionou.
E dom Helder falava com conhecimento de causa. No Palácio dos Manguinhos e na Igreja das Fronteiras, endereços onde morou, ele recebeu familiares de presos políticas. Iam pedir ajuda para localizar filhos, maridos e esposas. Falava também por conhecer a história da igreja da qual fazia parte. O arcebispo disse no program que se sentia à vontade para levantar-se contra as torturas, porque tortura era herança maldita da Inquisição. “E a Inquisição é uma das tristes fraquezas humanaas da Igreja divina do Cristo”, completou.
Os textos radiofônicos chegam na hora precisa. Após meses de trabalho, os documentos estão digitalizados. Cada programa diário tem duas versões, sendo uma do texto manuscrito pelo sacerdote e a outra datilografada. Os mais de cinco mil documentos estão prontos para a rede mundial de computadores. A disponibilização depende dos acertos finais entre as instituições envolvidas no projeto, segundo Igor Pessoa Burgos, superintendente de Digitalização, Gestão e Guarda de Documentos da Cepe. A parceria envolve a Cepe, o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) e a Prefeitura do Recife. Quando permitido o acesso, o internauta verá os textos escritos pelo sacerdote, entre abril de 1974 e abril de 1983, em ordem cronológica. Além disso, a parceria inclui digitalizar recortes de jornais, fotos, cartazes, crônicas e discursos.
A jornalista Tereza Rozowykwiat conhece o mundo dos textos radiofônicos de dom Helder. Por quatro anos, de 1978 a 1981, ela fez a cobertura jornalística da Arquidiocese de Olinda e Recife, na condição de repórter do Diario de Pernambuco. Recentemente, mergulhou neles e organizou o livro Meus queridos amigos: as crônicas de Dom Helder Camara. A publicação é um aperitivo para se conhecer o exercício quase diário de dom Helder de escrever para Um olhar sobre a cidade. A título de lembrete, o programa de rádio ia ao ar das segundas-feiras aos sábados. Para Tereza, Um olhar sobre a cidade foi a maneira encontrada por dom Helder para se comunicar com a população. Ela ressalta, contudo, que “por meio do programa ele não externou todos os seus pensamentos e opiniões, temendo que esse pequeno espaço que lhe restava na mídia fosse confiscado”.
Nem tudo foi dito pelo sacerdote nas crônicas radiofônicas, mas o dito fala por si. Nos textos, dom Helder fala de si, dos seus sentimentos. Trata até de anedotas sobre a maneira com que outros o enxergavam. Dom Helder era considerado por muitos como vaidoso e chegado à propaganda. A anedota está na crônica Cadê a imprensa?, levada ao ar em 25 de janeiro de 1979, Nela, o arcebispo teria morrido e subido ao céu, mas lá, quando chamado para entrar, teria ficado reticente e perguntou a São Pedro: “Entro assim, sem rádio, sem TV?”. Dom Helder considerou a anedota boa, inteligente e um aviso sério. “Mas se eu quiser ver tal qual me veem os olhos de irmãos meus, tenho que reconhecer que, parecendo humilde, considero fundamental a repercussão, a publicidade...”. E conclui que todos ganhariam em verificar, de vez em quando, como estamos sendo vistos pelos olhos dos que nos rodeiam.
Dom Helder tinha a noção exata do que dizia. Ainda em 1978, no programa do dia 29 de agosto, ele tocou no assunto tortura. E ao perguntar de quais sementes o mundo precisava, ele respondia que sementes do amor, justificando a resposta no excesso de ódio e violência existente na sociedade. “Quando cessarão os sequestros, as fuziladas, as vinganças? Quando cessarão as torturas, inclusive a de mandar os contestadores, como doentes, para hospitais de loucos, e de onde as pessoas acabam saindo feridas, para sempre, em seus cérebros”. Como homem religioso, ele termina a crônica falando de fé, afirmando que para haver liberdade e igualdade era necessário haver a verdadeira fraternidade. Crenças à parte, dom Helder continua atual e leitura indispensável ao país.
Coragem em tempos de chumbo
Crônicas como Um olhar sobre a cidade mostram Dom Helder dizendo o que devia ser dito, sem abrir mão de uma certa cautela. Afinal, ele temia que o pouco espaço que tinha na mídia lhe fosse confiscado
Trechos
Corações que voam
26 de setembro de 1974
Há corações que sobem a dois, ajudando-se, estimulando-se mutuamente… Há corações tão vazios, tão sem amor, que flutuam como penas ao vento: não chegam a subir, porque qualquer sopro o arrasta para longe… Já viram uma esponja que, de tanto apagar quadro-negro, cheio de giz, fica impressionantemente seca?… Há corações assim… Há corações que viraram uma pedra de gelo. Outros, simplesmente uma pedra. Outros se tornaram metálicos, de tanto lidar com dinheiro...
Opção pelos pobres
8 de outubro de 1976
Opção pelos pobres é aceitar sofrer por eles, pela defesa dos seus direitos. Opção pelos pobres é não admitir a miséria que é insulto ao Criador e Pai.
Aos omissos, medrosos e covardes
5 de abril de 1977
Fizestes escolas, Pilatos! Tens mais discípulos, através dos tempos e dos lugares, do que tu mesmo possas imaginar. Há pessoas bastante inteligentes para entender a situação e saber com que está a razão. Mas, se os grandes, os poderosos, aqueles que mandam, decidem dizer que é azul, tem que ser azul. Lavar as mãos, querendo fazer crer que não tem culpa, moda lançada de ter coragem e fibra. Pilatos continua a ser imitado.
Transfusão de sentimentos
5 de fevereiro de 1979
Vendo o mendigo no chão, senti, em dois tempos,
que ele morria de vergonha
de ter que estender
a mão a quem passava.
Era mais para jovem
do que maduro. Não carregava sinal de doença ou defeito físico. Com certeza, não encontrou trabalhou, cansou de tanto rodar pedindo emprego. Mas ninguém o acha com cara de mendigo. E ele tem fome. Maior do que a fome só a vergonha de ter que estender a mão a quem passa.
O chão e as estrelas
11 de outubro de 1980
Nem tenho dúvida. Quem não entende o chão humilde e as pedras duras se engana pensando que entende as estrelas…
Caridade
13 de fevereiro de 1982
Se eu morar numa cidade grande, mas desconhecer
os problemas das pessoas que nela vivem, e fugir
para as férias no Sul e até para a América e a Europa,
e nada fizer pela promoção
do homem, não sou
cristão… Se eu tiver a
melhor casa de minha rua,
e o melhor carro e não
souber que muita gente jamais terá um lar, e vai sempre andar a pé, não
sei de nada…
O programa daquele 17 de novembro começou no horário de sempre. 6h. E com a frase que se tornou bordão: “Meus queridos amigos”. Dom Helder sabia que a sua mensagem ia além dos católicos e, diante de um país com trincas da violência política, resolveu tocar na ferida. Disse abertamente que o povo brasileiro era contra a tortura. “Parece-nos absurdo e imbecil fazer de conta que se acredita no que é arrancado através da tortura. Quem pode garantir o que acaba se dizendo do próprio pai e da própria mãe se a tortura está em cima da gente, exigindo que a gente diga absurdos da própria mãe ou do próprio pai?”, questionou.
E dom Helder falava com conhecimento de causa. No Palácio dos Manguinhos e na Igreja das Fronteiras, endereços onde morou, ele recebeu familiares de presos políticas. Iam pedir ajuda para localizar filhos, maridos e esposas. Falava também por conhecer a história da igreja da qual fazia parte. O arcebispo disse no program que se sentia à vontade para levantar-se contra as torturas, porque tortura era herança maldita da Inquisição. “E a Inquisição é uma das tristes fraquezas humanaas da Igreja divina do Cristo”, completou.
Os textos radiofônicos chegam na hora precisa. Após meses de trabalho, os documentos estão digitalizados. Cada programa diário tem duas versões, sendo uma do texto manuscrito pelo sacerdote e a outra datilografada. Os mais de cinco mil documentos estão prontos para a rede mundial de computadores. A disponibilização depende dos acertos finais entre as instituições envolvidas no projeto, segundo Igor Pessoa Burgos, superintendente de Digitalização, Gestão e Guarda de Documentos da Cepe. A parceria envolve a Cepe, o Instituto Dom Helder Camara (IDHeC) e a Prefeitura do Recife. Quando permitido o acesso, o internauta verá os textos escritos pelo sacerdote, entre abril de 1974 e abril de 1983, em ordem cronológica. Além disso, a parceria inclui digitalizar recortes de jornais, fotos, cartazes, crônicas e discursos.
A jornalista Tereza Rozowykwiat conhece o mundo dos textos radiofônicos de dom Helder. Por quatro anos, de 1978 a 1981, ela fez a cobertura jornalística da Arquidiocese de Olinda e Recife, na condição de repórter do Diario de Pernambuco. Recentemente, mergulhou neles e organizou o livro Meus queridos amigos: as crônicas de Dom Helder Camara. A publicação é um aperitivo para se conhecer o exercício quase diário de dom Helder de escrever para Um olhar sobre a cidade. A título de lembrete, o programa de rádio ia ao ar das segundas-feiras aos sábados. Para Tereza, Um olhar sobre a cidade foi a maneira encontrada por dom Helder para se comunicar com a população. Ela ressalta, contudo, que “por meio do programa ele não externou todos os seus pensamentos e opiniões, temendo que esse pequeno espaço que lhe restava na mídia fosse confiscado”.
Nem tudo foi dito pelo sacerdote nas crônicas radiofônicas, mas o dito fala por si. Nos textos, dom Helder fala de si, dos seus sentimentos. Trata até de anedotas sobre a maneira com que outros o enxergavam. Dom Helder era considerado por muitos como vaidoso e chegado à propaganda. A anedota está na crônica Cadê a imprensa?, levada ao ar em 25 de janeiro de 1979, Nela, o arcebispo teria morrido e subido ao céu, mas lá, quando chamado para entrar, teria ficado reticente e perguntou a São Pedro: “Entro assim, sem rádio, sem TV?”. Dom Helder considerou a anedota boa, inteligente e um aviso sério. “Mas se eu quiser ver tal qual me veem os olhos de irmãos meus, tenho que reconhecer que, parecendo humilde, considero fundamental a repercussão, a publicidade...”. E conclui que todos ganhariam em verificar, de vez em quando, como estamos sendo vistos pelos olhos dos que nos rodeiam.
Dom Helder tinha a noção exata do que dizia. Ainda em 1978, no programa do dia 29 de agosto, ele tocou no assunto tortura. E ao perguntar de quais sementes o mundo precisava, ele respondia que sementes do amor, justificando a resposta no excesso de ódio e violência existente na sociedade. “Quando cessarão os sequestros, as fuziladas, as vinganças? Quando cessarão as torturas, inclusive a de mandar os contestadores, como doentes, para hospitais de loucos, e de onde as pessoas acabam saindo feridas, para sempre, em seus cérebros”. Como homem religioso, ele termina a crônica falando de fé, afirmando que para haver liberdade e igualdade era necessário haver a verdadeira fraternidade. Crenças à parte, dom Helder continua atual e leitura indispensável ao país.
Coragem em tempos de chumbo
Crônicas como Um olhar sobre a cidade mostram Dom Helder dizendo o que devia ser dito, sem abrir mão de uma certa cautela. Afinal, ele temia que o pouco espaço que tinha na mídia lhe fosse confiscado
Trechos
Corações que voam
26 de setembro de 1974
Há corações que sobem a dois, ajudando-se, estimulando-se mutuamente… Há corações tão vazios, tão sem amor, que flutuam como penas ao vento: não chegam a subir, porque qualquer sopro o arrasta para longe… Já viram uma esponja que, de tanto apagar quadro-negro, cheio de giz, fica impressionantemente seca?… Há corações assim… Há corações que viraram uma pedra de gelo. Outros, simplesmente uma pedra. Outros se tornaram metálicos, de tanto lidar com dinheiro...
Opção pelos pobres
8 de outubro de 1976
Opção pelos pobres é aceitar sofrer por eles, pela defesa dos seus direitos. Opção pelos pobres é não admitir a miséria que é insulto ao Criador e Pai.
Aos omissos, medrosos e covardes
5 de abril de 1977
Fizestes escolas, Pilatos! Tens mais discípulos, através dos tempos e dos lugares, do que tu mesmo possas imaginar. Há pessoas bastante inteligentes para entender a situação e saber com que está a razão. Mas, se os grandes, os poderosos, aqueles que mandam, decidem dizer que é azul, tem que ser azul. Lavar as mãos, querendo fazer crer que não tem culpa, moda lançada de ter coragem e fibra. Pilatos continua a ser imitado.
Transfusão de sentimentos
5 de fevereiro de 1979
Vendo o mendigo no chão, senti, em dois tempos,
que ele morria de vergonha
de ter que estender
a mão a quem passava.
Era mais para jovem
do que maduro. Não carregava sinal de doença ou defeito físico. Com certeza, não encontrou trabalhou, cansou de tanto rodar pedindo emprego. Mas ninguém o acha com cara de mendigo. E ele tem fome. Maior do que a fome só a vergonha de ter que estender a mão a quem passa.
O chão e as estrelas
11 de outubro de 1980
Nem tenho dúvida. Quem não entende o chão humilde e as pedras duras se engana pensando que entende as estrelas…
Caridade
13 de fevereiro de 1982
Se eu morar numa cidade grande, mas desconhecer
os problemas das pessoas que nela vivem, e fugir
para as férias no Sul e até para a América e a Europa,
e nada fizer pela promoção
do homem, não sou
cristão… Se eu tiver a
melhor casa de minha rua,
e o melhor carro e não
souber que muita gente jamais terá um lar, e vai sempre andar a pé, não
sei de nada…