URBANISMO » Ensaio sobre a cegueira

Juliana Colares
julianacolares.pe@dabr.com.br

Publicação: 03/03/2014 03:00

 (ANNACLARICE ALMEIDA/DP/D.A PRESS)
“O ambiente construído não é mero palco onde a violência acontece, mas antes, um elemento que estimula essa violência”. Quando escreveu essa frase no ensaio publicado pela Editora Universitária sob o título Quando o ambiente é hostil, a urbanista e coordenadora da pós-graduação em desenvolvimento urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Lúcia Leitão se referia à valorização dos ambientes privados e à negação das ruas, como representação do espaço público, nas cidades brasileiras. Na mesma linha, uma cartilha lançada recentemente por cinco urbanistas em parceria com o Sindicato dos Engenheiros de Pernambuco (Senge-PE) revisita um conceito que vem da década de 1960 para falar sobre um fenômeno crescente no Brasil, em particular no Recife: a cegueira das ruas.

“Há um insistente equívoco de que vigilância eletrônica, cercas elétricas e muralhas geram mais segurança e bem-estar ao cidadão. Muito pelo contrário. O crescente fenômeno de desvalorização dos espaços públicos urbanos é consequência, principalmente, da segregação espacial causada justamente pelo complexo de redes de vigilância eletrônica e pelos muros altos e cegos que separam os lotes privados dos espaços públicos adjacentes. Surge, então, a rua cega”, sustentam as autoras da cartilha Por um espaço público cidadão: o encontro do edifício com a rua.

Sem ir, nem vir
A vida nos grandes centros urbanos acontece entre muros, cada vez mais altos. Moldadas para os carros, as ruas são espaços de ir e vir e não de estar. Nos bairros mais nobres do Recife, por exemplo, ‘vigilância social’ é conceito que ficou no passado, na época em que quem passava nas ruas podia ver e ser visto por aqueles que estavam nas residências. Sob a justificativa do medo da violência urbana, criou-se um ambiente hostil, de paredões de cimento e cerâmica com guaritas encasteladas e sistemas de monitoramente eletrônico. Dentro, piscina, quadra de esportes, jardins. Fora, o empobrecimento dos espaços públicos refletido em ruas sem vida e sem olhos - a jornalista americana Jane Jacobs foi a primeira, em 1960, a falar da ideia de que a presença de pessoas nas ruas, seja caminhando ou nas janelas, diminui a violência urbana graças à vigilância indireta.

Em São Paulo, a arquiteta, urbanista, professora da USP e relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik, já alertou, inclusive com números, que os altos muros, construídos sobre o alicerce do discurso da insegurança, não só fragmentam a cidade como têm se transformado em alvo da moda dos assaltantes. Em Pernambuco, a Secretaria de Defesa Social não separa as estatísticas de acordo com o tipo de imóvel, de modo a permitir uma análise mais aprofundada da questão. Informa, apenas, que o número de roubos a residências aumentou em 3,1% entre 2012 e 2013, passando de 1.085 a 1.119, e o de furtos caiu 0,6% no mesmo período - de 8.666 para 8.616.

Os muros altos que cegam as ruas se tornaram comuns na paisagem. Chegam a sete metros de altura em edifícios com andares de garagem sobre o solo. “Seguros estão eles”, disse o pintor Edmilson Domingos, morador do bairro da Madalena, ao passar em uma rua de Setúbal cercada, de um lado e de outro, por edifícios com muros altos, apontando para um deles. Imerso na crença de que esse tipo de construção protege o morador da violência urbana externa, ele não discorda da medida. E diz que, se pudesse, também teria um muro mais alto - o da casa dele já mede 1,9 m.

Insegurança
O português aposentado João Matias Gomes Diogo, que vive no Recife há oito anos, também vê os muros altos com naturalidade e diz que a arquitetura é consequência do meio em que se vive. Em Portugal, diz, ele prefere morar em casa. No Recife, aderiu à sensação de segurança que o 11º andar do edifício onde mora lhe deu.

Em Quando o ambiente é hostil, a professora e pesquisadora Lúcia Leitão desmistifica o assunto. “O argumento do aumento da insegurança urbana, usado como justificativa para esse modo de habitar, expressa apenas uma meia-verdade”, diz. “Arquitetos, incorporadores imobiliários e síndicos, principalmente, parecem que ainda não se deram conta da repercussão social e mesmo urbanística da produção indiscriminada de espaços que se fecham por meio da construção de muros altos, de espaços vedados até mesmo ao olhar do outro, na cena urbana da cidade atual”, escreveu, concluindo: “Não perceberam, principalmente, que a negação da rua, materializada em muros altos, em guaritas eletrônicas hermeticamente fechadas, em espaços que se fecham para o convívio social pode ser um elemento a mais na incitação da violência urbana na medida em que reforça o sentimento de exclusão”.

“Nas ruas cegas, não há só o problema da insegurança, mas do conforto também. Se de um lado você tem um muro de sete metros de altura e do outro também, você se sente confortável para andar ali? A cidade do Recife evoluiu piorando. À medida em que foi crescendo, foi adotando edifícios onde a base é a garagem. Tem sete metros, mas não tem vida humana, não tem vegetação… E se todo mundo construir assim? Vamos ter uma cidade de muros?”, disse Maria de Lourdes Nóbrega, professora de arquitetura e urbanismo da Unicap e uma das autoras da cartilha lançada pelo Senge-PE. Esta foi a primeira. haverá outras duas, sobre mobilidade e patrimônio histórico, todas com foco na cidadania e reflexões sobre a cidade que estamos construindo e a cidade que queremos.