Mais de cinco décadas depois, fator humano segue decisivo Apesar de medo no imaginário coletivo, aviação é meio extremamente seguro

Publicação: 05/11/2016 09:00

Segundo especialistas em ciências aeronáuticas, o erro humano (seja do piloto, copiloto, controlador de tráfego aéreo ou do responsável pela manutenção) está presente em quase 100% dos acidentes aéreos. “Dificilmente você terá algum caso em que o fator humano não tenha sido decisivo. Os controles de produção de uma aeronave são muito rígidos, então, hoje, é muito raro ser um fator material a causa de uma queda”, afirma o ex-presidente do Conselho Nacional de Escolas de Aviação, Marcus Silva Reis.

Por outro lado, os especialistas lembram que avanços significativos foram registrados na área da aviação da década de 1960 até hoje. Atualmente, as chances de um avião cair, principalmente em voos comerciais, são mínimas. A Associação Internacional de Transportes Aéreos (Iata) calcula que acontecem 5,2 milhões de voos seguros para cada acidente. De acordo com as estatísticas, seria possível viajar todos os dias durante mais de 20 mil anos sem nunca sofrer um acidente aéreo fatal. “O espaço aéreo brasileiro é totalmente controlado. Os aviões possuem alta tecnologia, com sistemas duplicados de controle”, pontua o professor de logística da Faculdade Guararapes com 30 anos de atuação em aeroportos, Adilson Paradella.

A psicóloga Neusa Corassa, diretora do Centro de Psicologia Especializado em Medos, em Cutiriba, afirma que quando ocorre um acidente o medo coletivo é potencializado. Uma pesquisa do Ibope, divulgada em junho, mostrou que 42% dos brasileiros têm medo de viajar de avião. “Mesmo que as estatísticas mostrem que se morre mais em acidentes de carro, muitas pessoas temem a falta de controle que elas têm sobre uma situação que pode ocorrer em uma aeronave.”

Relato de um sobrevivente do Voo da Amizade, com base na cobertura da época

O tempo de viagem indicava que estávamos chegando ao Recife. O avião, um Douglas DC-7C, fazia as manobras de pouso. O relógio marcava 2h do dia 1º de novembro de 1961. O embarque, em Lisboa, parecia distante agora. Tinha acontecido por volta das 16h do dia anterior. Havíamos parado por seis horas para uma escala na Ilha do Sal, então significava que estávamos chegando. O comandante já havia anunciado o pouso. O céu estava limpo, sem nuvens. Era possível ver luzes e casas da capital pernambucana quando comecei a sentir que algo incomum estava acontecendo.

Faltando pouco para a aterrissagem, sentimos um impacto. O avião parecia descontrolado. Éramos 88, entre passageiros e tripulantes. Aquilo nos assustou, mas rapidamente o tremor passou. Senti que já estava no chão. Não foi uma chegada na pista, como esperávamos. Estavámos entre árvores. Vi pedaços do avião por cima delas. Uma parte do avião que deve ser da asa estava pendurada em um galho. Concluí que ele deve ter batido na árvore e, então, caído.

Havia pessoas mortas. Dava para ver. Estava escuro, mas um clarão indicava que havia fogo por ali. Pouco tempo depois, equipes de bombeiros chegaram. Eles tinham uma identificação da Base Aérea do Recife. Também apareceram funcionários com a logomarca da Panair do Brasil na farda. Juntos, começaram a prestar socorro às vítimas. Enquanto eu recebia os primeiros cuidados, ouvi que uma mulher, uma portuguesa que viajava em lua de mel e que se destinava ao Rio de Janeiro com o marido, havia morrido nos braços do homem com quem tinha acabado de casar.

Desesperados e com queimaduras pelo corpo, fomos levados ao Hospital da Aeronáutica. Ouvi mais uma notícia triste: as chances de sobrevivência dos que foram encontrados comigo são pequenas. O jornal do dia seguinte relatava que as chamas prosseguiram ardendo até as 4h, apesar dos esforços dos bombeiros. “Pavorosa catástrofe aérea no Recife: avião caiu em chamas às 2 horas”, informava a manchete do Diario de Pernambuco. Nas edições seguintes, os jornais divulgaram a causa do acidente: durante a aproximação, a aeronave voava abaixo do teto mínimo de segurança e colidiu contra a copa de uma árvore, a cerca de 2 km da cabeceira da pista 15 do Aeroporto do Recife.

Tragédias em terra e no mar marcam a história dos acidentes

O acidente do Voo da Amizade foi o segundo na lista de desastres aéreos em Pernambuco.  No dia 23 de julho de 1952, o Diario registrou a colisão de dois aviões de bombardeio que realizavam exercícios de treinamento na faixa do Pina a Piedade (Jaboatão). Oito militares morreram. Em 1987, outro avião caiu no estado, matando todos os passageiros e tripulantes. Um Hércules C-130, da Força Aérea Brasileira, decolou do Recife em 14 de dezembro de 1987. A 15 km de Fernando de Noronha, a aeronave caiu.

O arquipélago voltou a testemunhar outra queda três anos depois, quando um Bandeirante com funcionários do governo de Pernambuco caiu minutos após a decolagem em 1990. Em 1992, em Piedade, Jaboatão, um Bandeirante da Força Aérea Brasileira caiu na sala de partos do Hospital da Aeronáutica quando fazia um voo rasante dentro das comemorações do Dia do Aviador. O acidente ocorreu no dia 23 de outubro. Os cinco tripulantes morreram na hora, com os corpos carbonizados.

Em 1991, moradores do Ipsep, Recife, presenciaram a queda de um avião no meio de uma praça. A turbina de um Bandeirante da Nordeste pegou fogo na decolagem. O avião bateu em várias árvores, até cair. Dezessete pessoas morreram.

Já em 1993, um avião da FAB caiu em São Caetano, Agreste, matando os nove militares. Em 2008, um um bimotor King Air da Banda Calypso caiu com 10 pessoas em San Martin. O piloto e um produtor morreram. O administrador Lúcio Lima, de 55 anos, lembra do susto ao ver um avião no quintal da casa onde morava. “Pensei que um carro tinha batido, mas dei de cara com um avião”, completa.

Tempo entre decolagem e queda ficou marcado para sempre

As lembranças do dia 13 de julho de 2011, quando aconteceu a queda do voo 4896 da Noar Linhas Aéreas, ainda são nítidas na memória da professora Rosiane Oliveira, 49 anos. Irmã de uma das passageiras do bimotor (a engenheira civil Maria da Conceição de Oliveira), ela lembra de como se despediu de Ceça, como era chamada. “Dei um beijo e ela disse que às 17h estava de volta”, recorda. Ceça não retornou. Horas depois de ter saído de casa, seu nome apareceu na lista das 16 vítimas do acidente com o avião LET410.

A imagem do avião que se destinava a Mossoró (RN) caído e incendiado a 100 metros da Praia de Boa Viagem também povoa o imaginário de muitos pernambucanos que acompanharam as primeiras notícias sobre o acidente no começo da manhã daquela quarta-feira. “Quando recebi a ligação informando que meu irmão estava no avião, fiquei sem chão, mas mantinha um fio de esperança”, conta o empresário Geyson Soares, 40, irmão de Marcos Ely de Araújo Soares, um dos diretores da construtora Moura Dubeux, que morreu no acidente.

Cinco anos depois, a relação dos familiares com aeronaves não é mais a mesma. “Ainda não consegui entrar em um avião desde então e eu costumava viajar com frequência”, diz a produtora cultural Márcia Oliveira, irmã de Ceça. “Sempre que entro em um avião, conto três minutos, o tempo da decolagem até o acidente”, revela a cirurgiã dentista Taciana Guerra, mãe do dentista Raul Farias, também vítima.

Entrevista Marcus Silva Reis // piloto especialista em ciências aeronáuticas

Falhas humanas são a principal causa de acidentes aéreos. É o que afirma o ex-presidente do Conselho Nacional de Escolas de Aviação e coordenador do curso de ciências aeronáuticas da Universidade Estácio de Sá no Rio, Marcus Silva Reis. O especialista enfatiza que é preciso popularizar os cursos de segurança aérea.

O que mudou na aviação brasileira desde o Voo da Amizade?
O Programa Brasileiro de Segurança Operacional da Aviação Civil (documento aprovado em 2009 pela Anac que apresenta o processo brasileiro para o gerenciamento da segurança operacional da aviação civil, alinhado com os compromissos assumidos pelo Brasil em acordos internacionais) é, sem dúvidas, o maior avanço. No entanto, acho que ainda é pouco. É preciso popularizar a formação em segurança de voo no Brasil. Cursos desse tipo são muito comuns nos Estados Unidos, por exemplo. Por aqui, é difícil passar por essa formação, pois as vagas disponibilizadas pelo Cenipa e pela Anac são muito restritas. Hoje, existem graduações, como em ciências aeronáuticas ou em aviação civil, que oferecem a oportunidade de passar por esse tipo de curso, mas esse tema não tem que ser patrimônio de ninguém. Informações sobre segurança de voo devem ser um bem público e estar disponível para todos, na internet, por exemplo.

Como avançar nesse sentido?
Nossa agência nacional de aviação civil é relativamente nova e não tem investido o suficiente para fiscalizar. Para ilustrar o que estou dizendo, compare os números dos Estados Unidos com o do Brasil. Lá, são cerca de 44 mil pessoas trabalhando com isso. Aqui, não temos nem 3 mil pessoas. E o Brasil é o segundo país do mundo em aviação civil, atrás apenas dos Estados Unidos. Temos uma aviação comercial muito segura, mas é necessário avançar em questão de segurança para a aviação em geral, como nos voos particulares, por exemplo.
 
Quais são as principais causas dos acidentes aéreos?
O fator humano hoje aparece em praticamente 100% dos casos. Dificilmente você terá algum caso em que o fator humano não tenha sido decisivo. E isso não significa dizer que a culpa é só do piloto ou copiloto, mas há ainda o fator mecânico, que é operado por seres humanos, a questão dos controladores etc. Os controles de produção de uma aeronave são muito rígidos, então é muito raro ser um fator material.

Como a tecnologia tem ajudado?

O desenvolvimento da tecnologia na aviação civil serve justamente para mitigar ao máximo possível o fator humano. No entanto, a máquina não tem consciência psíquica ou emocional, então o olhar humano é fundamental. A tecnologia caminha com o humano.

Linha do Tempo
Desastres aéreos em Pernambuco

1961
1º de novembro Desastre do Voo da Amizade. O Douglas DC-7, que saiu de Lisboa para o Recife, colidiu contra uma árvore a 2,7 km da cabeceira da pista do Aeroporto do Recife e caiu. Dos 88 ocupantes, 45 morreram.

1987
14 de dezembro Um Hércules C-130 da FAB decolou do Recife e, uma hora depois, caiu no mar, a 15 km de Fernando de Noronha. As 29 pessoas a bordo morreram. A perícia apontou mau tempo e carga mal acondicionada.

1990
20 de setembro Os moradores de Noronha foram testemunhas de outro acidente. Três minutos após decolar, o EMB 110 Bandeirante, com funcionários do governo do estado, caiu no mar. Os 12 ocupantes morreram.

1991
11 de novembro A turbina de um Bandeirante da Nordeste pegou fogo. O piloto desviou de um residencial e bateu em árvores, até cair em uma praça no Ipsep. Dezessete mortos, entre eles uma criança e um aposentado no solo.

1996
17 de novembro Um choque no ar entre aviões foi a causa da queda de um Bandeirantes da FAB, em São Caetano, a 151 km de Recife. Nove militares morreram. Destroços foram encontrados num raio de 200 metros.

2002
29 de setembro Um bimotor Seneca caiu em Arcoverde, Sertão. Antes da queda, o avião derrubou uma árvore e bateu de bico no muro da Escola Estadual Noé Ferraz. Seis pessoas ficaram feridas. Ninguém morreu.

2007
16 de fevereiro O piloto alemão Frank Hettlich morreu em um acidente com o avião bimotor Seneca que pilotava e que caiu a cerca de 70 km de Fernando de Noronha. Saiu de Natal com destino a Dakar, no Senegal.

2008
23 de novembro Um bimotor modelo King Air B-200 OSR, com 10 pesoas, caiu em San Martin, no Recife, a 5 km do aeroporto. A aeronave pertencia à Banda Calypso. O piloto e um produtor do grupo morreram.

2011
13 de julho Um avião da Noar, que fazia o voo 4896, caiu em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. A queda aconteceu três minutos depois de decolar do Aeroporto dos Guararapes. Todas as 16 pessoas a bordo morreram.

Outros acidentes que chocaram Pernambuco

1939
13 de janeiro Um Junkers Ju 52 Marimbá caiu em Rio Bonito (RJ), depois de ter saído do Recife. O acidente com o avião, que fazia o percurso final do voo, com escala em Vitória, matou os nove ocupantes.

1964
4 de setembro A queda de um Viscount da Vasp pouco antes do pouso em Nova Friburgo, no Rio, vitimou pernambucanos. O avião fazia o voo do Recife a São Paulo. Ao todo, 39 pessoas morreram.

2009
31 de maio O voo 447 da Air France, que seguia do Rio para Paris, caiu no mar, a 600 km de Fernando de Noronha. As 228 pessoas a bordo morreram. Os corpos foram trazidos para o IML do Recife.

2014
13 de agosto Um avião, modelo Cessna 560XL, prefixo PR-AFA, caiu em Santos, litoral paulista. Morreram o ex-governador Eduardo Campos, que estava em plena campanha presidencial, e outras seis pessoas.

Números
Aviação regular - acidentes*
2010    Acidentes sem fatalidade
2011    Acidentes sem fatalidade - Acidentes com fatalidade
2012    Acidentes sem fatalidade
2013    Acidentes sem fatalidade
2014    Acidentes sem fatalidade
* Aviação geral (exceto aeronaves experimentais) 
Fonte: Anac

Conheça as aeronaves

VOO DA AMIZADE  Douglas DC-7
Quadrimotor a pistão | Usado no Brasil entre 1957 e 1965 |
Velocidade de cruzeiro: 550 km/h | Alcance: 5.810 km | Comprimento: 34,23 metros | Envergadura: 38,80 metros | Altura: 9,65 metros

AVIÃO CALYPSO  King Air B-200
Bimotor turboélice | Surgiu no início da década de 1970 | Velocidade máxima: 540 km/h | Alcance: 2.300 km | Comprimento: 13,4 metros | Envergadura: 16,6 metros |Altura: 4,5 metros

VOO DA NOAR  LET-410
Bimotor turbo-hélice penta-pá | Capacidade: dois tripulantes + 19 passageiros | Velocidade de cruzeiro: 388 km/h | Alcance máximo: 1.317 km | Comprimento: 14,42 metros | Envergadura: 19,48 metros | Altura: 5,83 metros