Liêdo e o Mercado de São José
Há dois anos, o Recife perdia a genialidade do homem que recolheu e registrou, em 14 livros, o pensamento original dos vendedores populares
Por Urariano Mota
jornalista e escritor
Publicação: 16/05/2016 03:00
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Folclorista considerava o Mercado de São José a sua %u201CAlhambra%u201D particular |
Liêdo Maranhão de Souza e o Mercado de São José constituíam uma só pessoa. Ambos nascidos no Recife, Liêdo era quem falava pelo mercado, assim como um boneco e seu ventríloquo. Liêdo era o mais jovem até quase 89 anos, enquanto o mercado andava pelos 138, quando o homem faleceu. Às vezes penso que sem Liêdo Maranhão não haveria o Mercado de São José. Pelo menos não existiria o mercado em sua face humana.
Se não fosse Liêdo, boa parte da vida popular do Nordeste que veio ao Mercado de São José estaria sem registro. Autor de 14 livros, como pesquisador até parecia um homem sem freios, porque recuperava sem piedade a fala do povo com uma obsessão até o limite do pornográfico. Se pensam que exagero, eis algumas falas, publicáveis em jornal, do seu livro Fala Povão:
“De Conceição, faxineira: ‘Eu só enjeito pisa’. Aí eu disse a ela: — ‘Opa, eu entendi outra coisa’. E ela: — ‘Essa outra eu não enjeito não, doutor’. De Socorro: — ‘Eu não tenho medo de Aids porque o meu sexo eu lavo muito bem lavado. Só não lavo com solução de bateria’. De Rubens, o popular Rubens, vangloriando-se: — ‘Eu estou com 80 anos e ainda tenho tesão’. – Ao que observou o sebista Melquisedec: — ‘Então você não usou, guardou’. De Zé, da Lanchonete Chá Mate Brasília: — ‘Silva é um menino de ouro! Se derreter, dá um anel’. De um frequentador do bar do Gregório: — ‘Eu estou com uma menina nova, mas é só penetração do primeiro grau’. Do pastor José Luiz, na praça, pregando o evangelho: — ‘Paulo disse: Bom seria que o homem não tocasse em mulher. E agora estão dizendo que Paulo era bicha!’... Do professor Viana, materialista, discutindo religião na praça: — ‘Todo cristão é masoquista de carteirinha! Ele perde um braço e diz: Graças a Deus eu fiquei com o outro’ ”.
Esse registro de Liêdo da fala do povo, a fala crua, esse flagrante que dá os nomes rejeitados pela formação hipócrita como chulos, com uma verdade que nos faz rir, como se o popular fosse uma criança crescida, vocês vão me perdoar, mas não vão encontrar nem no Lazarilho de Tormes. Numa entrevista lhe perguntei como era o seu método, como ele conseguia ser tão fiel à voz das pessoas do povo. Ao que ele me respondeu:
“Eu comecei com o gravador. Tinha momento que o camarada dizia assim, ‘doutor, eu só digo isso se o senhor desligar esse gravador’. Então eu ficava conversando o camarada, e eu dizia ‘espere aí um momentinho, que a minha mulher está me esperando ali na igreja’. Aí eu já tinha um caderno, chegava na igreja, começava a escrever o que eu tinha ouvido. Depois eu voltava pra conversar mais. É difícil dizer qual o camelô mais marcante. Um tem um lado mais bonito, outro mais criativo, outro mais engraçado. Lembro que tinha uma escultura minha, de ferro, que a Prefeitura do Recife comprou, era uma homenagem à passagem do papa no Recife. E o camelô Fazendeiro trabalhava defronte à escultura. Na época, saiu no jornal que a prefeitura tinha comprado a escultura por vinte mil reais. E ele vendia umas pomadinhas a 1 real cada. Um dia, quando ele tinha terminado as vendas dele, ficou olhando a escultura. E me disse: ‘Mas doutor, o senhor botou no do papa direitinho’ ”.
No entanto, diferente de quem pensa que as coisas da terra brotam feito raiz, puras, Liêdo Maranhão explicava como descobriu o povo do Mercado de São José: “A minha sensibilidade pelas coisas daqui, por incrível que pareça, começou na Espanha. Quando eu voltei ao Recife, aí eu fiquei mais brasileiro. Note por quê. Na Espanha tem o palácio da Alhambra, um palácio árabe muito bonito. E um americano, estudioso do islamismo, foi para Granada. E falou com o prefeito pra morar no palácio. Na época, estava abandonado, completamente. Aí o prefeito respondeu: ‘Olha, ali só vive malandro, vagabundo, ladrão. Que é que você vai fazer ali?’. Ele argumentou: ‘Eu não tenho nada pra me roubarem’. E foi. E aqueles vagabundos, que viviam lá, começaram a cercar o americano, a fantasiar e contar história. Então ele, o escritor Washington Irving, escreveu Cuentos de La Alhambra. E por isso o governo espanhol se interessou e restaurou, e lá tem uma placa com a frase ‘aqui viveu Washington Irving’. Então quando cheguei na praça do Mercado de São José, o pessoal começouu a contar coisa de mulher, de remédio, me disse: ‘Pronto, aqui é minha Alhambra’.
Aquele livro que eu tenho: O Mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste, motivado por ele, uma vez eu levei Athos Bulcão, um arquiteto da equipe de Niemeyer. Athos Bulcão me disse: ‘Liêdo, isso é a Grécia antiga. Isso é o teatro antigo da Grécia, esse pessoal aí na praça, representando’. Ele se referia aos camelôs, os come-vidro, engole-cobra, os cantadores, mas, sobretudo aos camelôs de remédio, que são muito inteligentes. Inventam até nomes para as drogas que vendem. Tem uma que é a ‘Resina da Gerimataia’. Outro: ‘Banha do peixe-elétrico’.
Tinha um que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é um ambiente de mulher, de prostituta... então ele com a garrafa na mão, uma ‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro, porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’. E continuava: ‘Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’. Outro camelô dizia assim: ‘O homem mais a mulher é como uma balança: quando um sobe, o outro sobe, quando um desce, o outro desce, quando um chega, o outro chega, aí é tutu com tutu e bumbum com bumbum’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu tenho um livro com tudo isso, Marketing dos camelôs de remédio”.
Quando lhe perguntei quem era Liêdo Maranhão, ele me respondeu:
“Sou Liêdo Maranhão de Souza, nascido em 3 de julho de 1925, no Recife, bairro de São José. Sou dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”. Mas seria mais próprio saber quem ele era pelo que ele salvou, como neste registro:
“Microfone é um barraqueiro famoso, do Mercado. Uma vez, um freguês tomando uma sopa no boxe de Microfone, no Mercado, achou uma pedrinha na sopa. Aí o cara reclamou: ‘Microfone, nessa sopa tem pedra’. E Microfone, no ato: ‘Olhe, se fosse brilhante, você não dizia nada’. E completou, pra fulminar: ‘Pedra em sopa é fato natural’. É uma beleza, não é?”
Sem dúvida, essa entrega ao registro do povo é que era uma beleza. Salve, Liêdo.