O legado é sólido
Criador do conceito de "modernidade líquida" e visto como dos principais pensadores contemporâneos, Zygmunt Bauman morre aos 91 anos
Publicação: 10/01/2017 03:00
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Bauman presenciou os principais acontecimentos do século 20 e, na virada do milênio, criou uma teoria - a liquidez do nosso tempo - que levaria seu nome para além do campo da sociologia e o tornaria um escritor best-seller.
No Brasil, a obra é publicada pela editora Zahar, que já planejava para janeiro um lançamento, Estranhos à nossa porta, reflexão sobre a crise migratória na Europa. Segundo a editora, Bauman analisa neste livro as origens, os contornos e o impacto desse “pânico moral” que os refugiados despertam em alguns.
Em uma entrevista à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do jornal O Estado de S. Paulo, em agosto de 2016, Bauman comentou o livro. “O problema não é o número crescente, em vários países, de pretendentes a regimes autoritários, mas do ainda mais rápido crescimento de seus devotados apoiadores”, disse Bauman. “Não é uma questão sobre os que querem o poder (eles sempre serão muitos, já que a demanda popular por eles é abundante), mas sobre a ampliação da demanda pelos serviços que eles falsamente prometem, que constitui indiscutivelmente o mais perigoso dos desafios futuros.”
Entre seus trabalhos mais célebres, está também Modernidade e holocausto, de 1989, livro em que discorda da maioria dos pensadores que consideram o Holocausto uma ruptura na modernidade. Para Bauman, o extermínio em massa dos judeus era exatamente um resultado de pilares da modernidade, como industrialização e a burocracia racionalizada. “Foi o mundo racional da civilização moderna que tornou o holocausto palpável”, escreveu.
Na década de 1990, ele forjou o termo “modernidade líquida” para descrever um mundo em tal fluxo que os indivíduos são deixados sem raízes e desamparados de parâmetros previsíveis. Seus trabalhos exploram a fragilidade das conexões humanas nos tempos modernos e a insegurança gerada por um mundo em transformação.
Na Polônia, era frequentemente uma figura controversa. Em 2006, um historiador identificado com a direita revelou documentos mostrando que Bauman serviu como oficial numa organização militar na época de Stalin, a Internal Security Corps, que ajudava a impor o comunismo na nação ao assassinar opositores ao regime. Bauman reconheceu pertencer àquela instituição, mas insistiu que tinha apenas um trabalho de escritório. Nenhuma evidência apareceu conectando o filósofo a qualquer morte.
Nacionalistas também o enxergavam como inimigo do país. Em 2013, apoiadores de uma organização de extrema-direita interromperam um debate público com Bauman na cidade de Breslávia, com gritos de “vergonha” e “abaixo o comunismo”, portando fotos de resistentes poloneses mortos pelo regime. Ele parou de visitar a Polônia.
Suas teorias foram uma grande influência no movimento antiglobalização. Ele se focou nos excluídos e marginalizados, descrevendo a quantidade de pessoas que viram suas chances de uma vida digna destruídas pelo novo mundo sem fronteiras.
Perseguição e consagração
Bauman nasceu em Poznan, em 1925, e, quando criança, teve que fugir com a família por conta do nazismo. Comunista convicto durante e depois da Segunda Guerra Mundial, foi colaborador nos anos 1945-1953 dos serviços de Inteligência militar comunista. Seu arquivo se encontra no Instituto da Memória Nacional (IPN), organismo encarregado de perseguir os crimes nazistas e comunistas. Em seguida, Bauman foi também exilado da URSS, expulso pelo Partido Comunista, em uma confusão marcada pelo antissemitismo.
Em 1954, começa a ensinar filosofia e sociologia na Universidade de Varsóvia, antes de deixar a Polônia e ir para Israel, em 1968, em razão da onda antissemita orquestrada pelo poder comunista. Depois de se instalar na Grã-Bretanha em 1971, ele dá aulas até se aposentar em 1990, na Universidade de Leeds, onde se tornou professor emérito. A universidade criou o Instituto Bauman em sua homenagem. Então marxista, Zygmunt Bauman se tornou um dos mais importantes representantes do pós-modernismo. No fim da década de 1980, ele criou o conceito de “sociedade líquida”, onde tudo - incluindo o indivíduo - é alvo de consumo. Ele deixa sua segunda mulher, Aleksandra Jasinska-Kania, três filhas e vários netos.
Ganhador de diversos prêmios internacionais, incluindo o Prêmio europeu Nagrod Amalfi e o prestigioso Prêmio Theodor W. Adorno, é autor de mais de 40 obras, traduzidas em pelo menos 15 idiomas.
Essenciais de Bauman
Mal-estar na pós-modernidade
Reflexão sobre as ansiedades modernas, estabelecendo nexos com o famoso O mal-estar da civilização, de Freud. Para o sociólogo, a marca da pós-modernidade é a própria “vontade de liberdade”, princípio que se opõe diretamente à segurança projetada em torno de uma vida social estável. Bauman lida com a universalização do medo ou das perdas derivadas da troca da ordem pela busca da liberdade.
Vida líquida
O livro faz uma análise dos efeitos que a atual estrutura social e econômica, com base no que é descartável e efêmero, gera na vida, no amor, nos relacionamentos profissionais, na segurança, no consumo, no próprio sentido da existência. Ele afirma que a precificação da vida social suscita uma condição humana na qual predominam o desapego, a versatilidade em meio à incerteza e a vanguarda constante do eterno recomeço.
Modernidade líquida
Para Zygmunt Bauman, a modernidade imediata é "leve", "líquida", "fluida" e infinitamente mais dinâmica que a modernidade "sólida" a que substitui. A passagem de uma a outra acarretou profundas mudanças em todos os aspectos da vida humana. Bauman esclarece como se deu essa transição e nos auxilia a repensar os conceitos e esquemas cognitivos usados para descrever a experiência individual humana e sua história conjunta.
Amor líquido
A modernidade líquida, "um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível" em que vivemos, traz uma misteriosa fragilidade dos laços humanos, um amor líquido. Bauman investiga de que forma nossas relações tornam-se cada vez mais "flexíveis", gerando níveis de insegurança maiores. A prioridade a relacionamentos em redes faz com que não saibamos mais manter laços a longo prazo.
Capitalismo parasitário
Olhar crítico sobre temas variados do mundo contemporâneo: cartões de crédito, anorexia, bulimia, a crise financeira de 2009 e suas possíveis soluções, a inutilidade da educação nos moldes atuais, a cultura como balcão de mercadorias... Todos são fenômenos que colaboram para o mal-estar dominante em nossas sociedades, e estão relacionados ao conceito de liquidez desenvolvido pelo sociólogo.
A arte da vida
Na obra, o sociólogo e filósofo polonês Bauman analisa o que é felicidade e se é possível alcançá-la definitivamente. A sociedade líquida moderna espera que cuidemos de dar sentido e forma às nossas vidas, nos julga pelos resultados e também nos faz pensar que a arte da vida tem por objetivo a felicidade. O filósofo aponta condições - e limites - que influenciam nossos projetos de vida.