Uma vida em defesa dos yanomamis
Gyuri, filme dirigido pela pernambucana Mariana Lacerda, é dedicado à trajetória da fotógrafa e ativista Claudia Andujar em prol do reconhecimento e da luta indígena
ANDRÉ SANTA ROSA
andre.rosa@diariodepernambuco.com
Publicação: 02/10/2020 03:00
É uma distância enorme e uma relação geográfica à primeira vista aleatória, entre a Hungria e o povo yanomami, que vive no Amazonas e em Roraima. Contudo, uma ponte pautada na sobrevivência e no acolhimento foi traçada quando a fotógrafa e ativista Claudia Andujar se refugiou no Brasil e dedicou a vida à defesa dos yanomamis. O filme Gyuri, dirigido pela pernambucana Mariana Lacerda, conta essa história. Ele está disponível no É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários, cuja 25ª edição é on-line (etudoverdade.com.br) e gratuita e segue até domingo.
A primeira cena do documentário apresenta um conflito de paisagens: Claudia em seu apartamento na Europa, entrecortada por uma visão da floresta vista do alto. Partimos da sua narração, que conta como aos 13 anos, vinda de uma família judia, ela atravessou a guerra na Hungria e se viu em uma Viena tomada pelos nazistas em 1944. Seu pai foi levado ao campo de concentração em Auschwitz. Junto com sua mãe, Claudia conseguiu chegar aos Estados Unidos, e, por fim, refugiou-se no Brasil.
Aqui, deparou-se com outra tragédia humanitária e dirigiu seu Fusca de São Paulo até a Amazônia. Através da fotografia, o filme conta esse percurso feito pela primeira vez em um outro contexto. Fotografia que é uma das riquezas tanto do documentário, quanto da relação entre Claudia e o povo yanomami, gerando um rico acervo que eventualmente ganha o mundo. O filme apresenta de forma muito íntima a relação entre Andujar e o xamã Davi Kopenawa. Essa é uma das melhores qualidades: a forma como consegue ser fixado em tela um genuíno interesse humano entre ambos.
Esse registro é também uma breve mostra dos loopings históricos. Em 1978, Claudia voltou para São Paulo após ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional pela ditadura militar. Na capital paulistana, junto com Carlo Zaquine, criou um grupo de estudos em defesa da criação de uma área indígena yanomami, que se tornou a ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), depois denominada Comissão Pró-Yanomami.
Em 1992, ocorreu o reconhecimento do governo brasileiro da demarcação da Terra Indígena Yanomami. Nela, vivem hoje 26 mil indígenas, ao mesmo tempo que 20 mil garimpeiros estão a invadir as terras. Existe uma petição on-line que solicita a remoção imediata do garimpo. É o principal vetor de transmissão de Covid-19 entre indígenas.
Gyuri é em si, também, um retrato da passagem do tempo, de uma relação de acolhimento mútuo construída por muitos anos. Passagem que é expressa nas histórias do passado, nas viagens, nos corpos marcados pelo tempo e pela luta. E as fotografias, que deram visibilidade à causa yanomami, aqui ganham novo sentido para uma memória muito íntima. Carregam uma poética muito potente sobre as forças desses encontros improváveis.
3 perguntas - Mariana Lacerda // diretora
Como foi seu contato com a história de Claudia e Davi?
Eu sempre soube da Claudia e não consigo me recordar em que momento não soube dela e da fotografia dela, também do gesto dela para com os índios yanomami. Já com Davi se deu a partir do livro dele, A queda do céu, de 2015. Uma das vezes que ele veio a São Paulo, a gente estabeleceu uma amizade, ou namoro de onça, como ele fala no filme. Ele é muito amigo da Claudia, são irmãos de luta.
O filme começa na Europa e se desloca ao território yanomami, e acompanhamos Claudia nesse trajeto. Como foi para você acompanhar essa ida?
A palavra que você usou é muito boa: acompanhar. Estivemos à disposição dela, para o que ela precisasse e se sentisse bem e acolhida dentro desse espaço que pode ser um filme, mas que é também um espaço de viagem e retorno à casa, como ela se sente na terra indígena. É um deslocamento que é, digamos, espiritual, mais psicanalítico, de alguém que perde uma terra e protege outra.
O filme traz as fotografias, muitas delas que deram visibilidade à causa yanomami. Como foi essa relação?
Na década de 1970, o governo tinha um projeto de colonizar a Amazônia, a palavra usada era realmente essa, e falavam que não existia vida humana ali. Curioso porque não só existia vida humana como vegetal, animal e mineral, que para os indígenas não existia distinção entra a terra e o homem. Isso era um pouco sofisticado para um governo militar entender. O que Claudia fez foi mostrar que existiam indígenas naquela terra. Essas fotografias se desdobram no próprio desenho da terra yanomami, que Claudia ajudou a construir. O encontro de Claudia e Davi, que resulta na criação da terra, é um desses reais e que dura até hoje
A primeira cena do documentário apresenta um conflito de paisagens: Claudia em seu apartamento na Europa, entrecortada por uma visão da floresta vista do alto. Partimos da sua narração, que conta como aos 13 anos, vinda de uma família judia, ela atravessou a guerra na Hungria e se viu em uma Viena tomada pelos nazistas em 1944. Seu pai foi levado ao campo de concentração em Auschwitz. Junto com sua mãe, Claudia conseguiu chegar aos Estados Unidos, e, por fim, refugiou-se no Brasil.
Aqui, deparou-se com outra tragédia humanitária e dirigiu seu Fusca de São Paulo até a Amazônia. Através da fotografia, o filme conta esse percurso feito pela primeira vez em um outro contexto. Fotografia que é uma das riquezas tanto do documentário, quanto da relação entre Claudia e o povo yanomami, gerando um rico acervo que eventualmente ganha o mundo. O filme apresenta de forma muito íntima a relação entre Andujar e o xamã Davi Kopenawa. Essa é uma das melhores qualidades: a forma como consegue ser fixado em tela um genuíno interesse humano entre ambos.
Esse registro é também uma breve mostra dos loopings históricos. Em 1978, Claudia voltou para São Paulo após ser enquadrada na Lei de Segurança Nacional pela ditadura militar. Na capital paulistana, junto com Carlo Zaquine, criou um grupo de estudos em defesa da criação de uma área indígena yanomami, que se tornou a ONG Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), depois denominada Comissão Pró-Yanomami.
Em 1992, ocorreu o reconhecimento do governo brasileiro da demarcação da Terra Indígena Yanomami. Nela, vivem hoje 26 mil indígenas, ao mesmo tempo que 20 mil garimpeiros estão a invadir as terras. Existe uma petição on-line que solicita a remoção imediata do garimpo. É o principal vetor de transmissão de Covid-19 entre indígenas.
Gyuri é em si, também, um retrato da passagem do tempo, de uma relação de acolhimento mútuo construída por muitos anos. Passagem que é expressa nas histórias do passado, nas viagens, nos corpos marcados pelo tempo e pela luta. E as fotografias, que deram visibilidade à causa yanomami, aqui ganham novo sentido para uma memória muito íntima. Carregam uma poética muito potente sobre as forças desses encontros improváveis.
3 perguntas - Mariana Lacerda // diretora
Como foi seu contato com a história de Claudia e Davi?
Eu sempre soube da Claudia e não consigo me recordar em que momento não soube dela e da fotografia dela, também do gesto dela para com os índios yanomami. Já com Davi se deu a partir do livro dele, A queda do céu, de 2015. Uma das vezes que ele veio a São Paulo, a gente estabeleceu uma amizade, ou namoro de onça, como ele fala no filme. Ele é muito amigo da Claudia, são irmãos de luta.
O filme começa na Europa e se desloca ao território yanomami, e acompanhamos Claudia nesse trajeto. Como foi para você acompanhar essa ida?
A palavra que você usou é muito boa: acompanhar. Estivemos à disposição dela, para o que ela precisasse e se sentisse bem e acolhida dentro desse espaço que pode ser um filme, mas que é também um espaço de viagem e retorno à casa, como ela se sente na terra indígena. É um deslocamento que é, digamos, espiritual, mais psicanalítico, de alguém que perde uma terra e protege outra.
O filme traz as fotografias, muitas delas que deram visibilidade à causa yanomami. Como foi essa relação?
Na década de 1970, o governo tinha um projeto de colonizar a Amazônia, a palavra usada era realmente essa, e falavam que não existia vida humana ali. Curioso porque não só existia vida humana como vegetal, animal e mineral, que para os indígenas não existia distinção entra a terra e o homem. Isso era um pouco sofisticado para um governo militar entender. O que Claudia fez foi mostrar que existiam indígenas naquela terra. Essas fotografias se desdobram no próprio desenho da terra yanomami, que Claudia ajudou a construir. O encontro de Claudia e Davi, que resulta na criação da terra, é um desses reais e que dura até hoje