Um legado ainda desconhecido Cem anos após abdicar, a figura de Nicolau II, último czar da Rússia, ainda desperta debates no país

Publicação: 18/03/2017 03:00

Santo, tirano, chefe de Estado incompetente ou simples vítima da história? Cem anos depois da abdicação de Nicolau II e da chegada ao poder dos bolcheviques, a Rússia continua debatendo o legado do último czar de todas as Rússias. “Não existe consenso na sociedade ou entre os historiadores sobre Nicolau II”, resume Boris Kolonistky, professor de História da reputada Universidade Europeia de São Petersburgo. Os ortodoxos mais fervorosos veneram um Romanov canonizado, muitos russos consideram que pertencem ao passado e muitos historiadores criticam a fragilidade de sua política.

De acordo com uma pesquisa publicada em fevereiro pelo centro independente Levada, quase metade dos entrevistados afirmaram, no entanto, ter uma opinião favorável do último czar. No que diz respeito ao presidente Vladimir Putin, ele reabilitou parcialmente o último czar e, em geral, o legado dos imperadores russos, tão criticado pelas autoridades soviéticas, ao posicionar-se na continuidade histórica dos monarcas e de seus sucessores, os secretários-gerais do Partido Comunista Soviético.

O chefe de Estado inaugurou estátuas e exposições em homenagem à dinastia. Em dezembro, tentou dar o exemplo ao defender que o centenário das revoluções de 1917 deveria permitir a “reconciliação”.

Canonização
Para o último descendente direto dos Romanov residente na Rússia, Paul Koulikovski, a abdicação de Nicolau II permanece um mistério. “Poderia ter sido facilmente evitada”, afirmou à AFP o bisneto da irmã de Nicolau II. “Estava isolado e não tinha família nem amigos a seu lado naquele momento crucial”, completa o homem de 56 anos, que não tem nenhuma ilusão sobre o futuro dos Romanov na Rússia atual. Ele cita uma pesquisa recente que aponta que apenas 20% dos russos desejariam o retorno da monarquia. “Mesmo com o retorno da monarquia, nada garante que os Romanov reinariam de novo, algo que está OK na minha opinião”, completa Paul, que foi criado e morou na Dinamarca, antes de casar com uma russa.

No poder desde 1894 e destituído pelo movimento revolucionário de fevereiro de 1917, Nicolau II abdicou em 2 de março de 1917 no calendário juliano (15 de março do calendário gregoriano, o atual) em Pskov, uma pequena cidade próxima à atual São Petersburgo. Após a revolução de outubro, os bolcheviques determinaram a prisão do czar derrotado e de sua família. Todos foram executados na madrugada de 16 para 17 de julho de 1918.

Atualmente, Nicolau II é uma figura inevitável para uma parte dos ortodoxos russos, pois todos os integrantes executados da família Romanov foram canonizados como mártires. A estreia em outubro de 2017 de “Matilda”, um filme de Alexei Outchitel que conta o romance entre Nicolau II e uma bailarina, provocou a fúria dos ortodoxos tradicionalistas, que ameaçaram as salas que exibiram o filme. Recentemente, os simpatizantes da monarquia afirmaram que um busto de Nicolau II construído na Crimeia expelia mirra, um suposto milagre que, no entanto, foi negado pela Igreja.

A revolução
A Rússia lembra neste ano o centenário das revoluções de fevereiro e outubro de 1917, que levaram à chegada ao poder dos bolcheviques. A seguir, cinco momentos-chave destes acontecimentos que deixaram uma marca indelével na memória coletiva russa.

Primeiros motins
No dia 23 de fevereiro do calendário juliano (8 de março, segundo o calendário gregoriano, o atual), milhares de manifestantes protestam contra a escassez de alimentos e invadem Petrogrado, atual São Petersburgo. Estas manifestações, compostas majoritariamente por mulheres, se estendem rapidamente a uma greve geral no dia 25 de fevereiro. O czar Nicolau II ordena então reprimir à força o que até o momento era considerado apenas uma revolta da fome. Isso marca uma guinada. O exército simpatiza com os manifestantes e o reino do czar se aproxima de seu fim.

Volta de Lênin
Em 1917, o fundador do bolchevismo e stá no exílio há mais de uma década. Seu retorno à Rússia é realizado com a ajuda da Alemanha, em guerra com o Império czarista, que espera enfraquecer, assim, seu inimigo. Lênin abandona Genebra no dia 28 de março, cruza a Alemanha em um trem especial e depois a Escandinávia, de onde ultrapassa a fronteira no dia 3 de abril - 16 de abril - de 1917. No dia seguinte, defende sua tese ante seus fiéis, denunciando o governo provisório e qualquer compromisso com os monárquicos. Lênin precisa que se exilar novamente em julho, na Finlândia, quando o partido bolchevique é declarado ilegal, antes de retornar para dirigir a revolução de outubro.

O ataque do Palácio de Inverno
Na noite de 25 de outubro - 7 de novembro -, o cruzeiro Aurora dispara contra o Palácio de Inverno, marcando o início do ataque da antiga residência do czar e sede do governo provisório. Liderados por Lênin, os bolcheviques tomam o controle de Petrogrado e depois do Palácio de Inverno, sem derramamento de sangue. Esta tomada de poder preparada minuciosamente, embora os bolcheviques tenham sido politicamente minoritários, é possível pelo vácuo institucional no qual a Rússia se encontra.

O governo de Lênin
No dia 27 de outubro de 1917, Lênin forma um Conselho de Comissários do Povo composto apenas pelos bolcheviques, incluindo Josef Stalin e Leon Trotski. Lênin se recusa a incluir em seu governo as forças da esquerda moderada e cria uma polícia política (a Cheka) em suas primeiras semanas no poder, enquanto milhares de “inimigos do povo” são detidos ou
executados. Os bolcheviques ainda precisam ganhar uma sangrenta guerra civil antes de fundar a Uniã o Soviética, em 1922.