O papa contra Hitler

Marcelo Navarro Ribeiro Dantas
Membro eleito da Academia Norte-rio-grandense de Letras
mnrdantas@uol.com.br

Publicação: 04/05/2014 03:00

Esta semana, o mundo assistiu a um acontecimento extraordinário. Mais que isso, inédito: o dia dos quatro papas. Dois sendo canonizados — João XXIII e João Paulo II —, mais dois, vivos, praticamente concelebrando essa canonização — Bento XVI e Francisco. Mas esse acontecimento histórico não deveria ofuscar dois outros papas recentes, que, assim como os quatro citados, ajudaram a dar à Igreja a face que ela tem hoje: Pio XII e Paulo VI. Sobre Giovanni Battista Montini, Paulo VI, talvez fale depois. Mas para remarcar sua importância basta de logo dizer que, se João XXIII ousou convocar o Concílio Vaticano II, ele teve a competência de concluí-lo. E não há quem discorde de que, quase sempre, terminar — e terminar bem — é quase sempre mais fácil que começar. E foi essa díade — ousadia para inaugurar o concílio e capacidade de finalizá-lo a contento — o que simbolizaram seus dois sucessores, escolhendo para seu nome papal, pela primeira vez na história, um nome composto: João Paulo.

Hoje, é preciso dizer algo sobre Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, Pio XII, um dos maiores pontífices da Igreja, e, no entanto, poucas décadas depois de encerrado seu grande pontificado, um papa caluniado, e que não goza, mesmo entre os católicos, de um bom conceito, apesar de tanto bem que fez.
Pio XII está, injustamente, carregando a pecha de ser O papa de Hitler, por causa de um livro com esse nome (“Hitler’s Pope”), escrito pelo jornalista inglês John Cornwell em 1999, e que, por seu título bombástico — e aí funciona a velha lógica de que “avião no ar não gera notícia” e “notícia não é quando o cachorro morde o homem, mas quando o homem morde o cachorro” —, foi um bestseller tanto lá fora como aqui. No livro, ele diz basicamente que o papa, que havia sido núncio apostólico na Alemanha, silenciou diante do horror nazista.

Não fora a primeira agressão do tipo. Em 1963 tinha saído uma peça teatral do alemão Rolf Hochhuth, O Vigário (“Der Stellvertreter”), que praticamente dizia que Pio XII era nazista. O ataque era tão infundado — e foi devidamente rebatido por reportagens e livros publicados à época — que não chegou a encontrar eco na opinião pública. Hitler detestava Pacelli: chegou a planejar sequestrá-lo e matá-lo. Mais de uma vez! Isso é fato histórico. Basta pesquisar. Mas O papa de Hitler, infelizmente teve muito sucesso. E quase ninguém, fora alguns católicos militantes, lembrou declarações de judeus eminentes como Golda Meir e Albert Einstein em favor de Pacelli e da Igreja sob seu comando. Ademais, Pio XII foi sucedido por um papa muito mais simpático e popular — João XXIII —, e a maior parte da Igreja pós-conciliar, naturalmente, buscou dar um passo à frente daquela pré-conciliar. Que Pio XII encarnava.

Diversos livros foram escritos buscando desmanchar essa pecha. Nenhum foi um sucesso editorial. Desconheço se algum foi traduzido aqui no Brasil. Destaco entre eles “The Myth of Hitler’s Pope” (O Mito do papa de Hitler), escrito por um rabino judeu, David G. Dalin, e “The Pope’s Jews” (O papa dos judeus), que mostram, com documentos, a verdade.

Fontes isentas admitem que nenhuma instituição religiosa no mundo lutou tanto contra o nazismo e salvou tantos judeus como a Igreja de Pio XII. O rabinato de Roma agradeceu a ele, que salvou centenas de vezes mais gente que homens igualmente admiráveis como Oskar Schindler. Há fontes judaicas, como o historiador Pinchas Lapide, que falam em cerca de 800 mil almas. Uma ONG internacional pelo diálogo inter-religioso, a Pave the Way Foundation, lançou uma obra definitiva, compilada pelo judeu Gary Krupp: “Pope Pius XII and the World War II – The Documented Truth” (O papa Pio XII e a II Guerra Mundial – A Verdade Documentada), que mostra que aquele pontífice foi o que os judeus chamam “um Justo entre as Nações”.

O processo de beatificação de Pio XII foi iniciado por Paulo VI, ao final do próprio Concílio Vaticano II. Bento XVI o considerou venerável (um passo antes de ser declarado beato). Mas não importa se a Igreja o fará bem-aventurado ou até santo. Isso só Deus sabe. O que importa é que se acabe com essa mistificação de que ele teria sido O Papa de Hitler.

Pio XII — goste-se ou não dele, mas por outros motivos, critique-se, por isto ou aquilo, sua vida e seu pontificado — jamais foi nazista nem omisso. Ele foi, isso sim, O papa contra Hitler.