"Vamos transplantar o colega"

Cláudio Lacerda
Cirurgião. Professor da UPE e da UNINASSAU.
cmlacerda1@hotmail.com

Publicação: 01/03/2015 03:00

Ao contrário dos leigos, um médico gravemente doente não tem ilusões. Consequentemente, sofre mais. Por isso, desperta em nós, colegas, imenso sentimento de solidariedade e vontade de ajudar.
Atuando como ginecologista na cidade de Suzano, em São Paulo, Cássio tinha 48 anos quando, em meados de 2012, procurou o cirurgião transplantador de fígado Paulo Massarollo, na capital paulista.
Era portador de cirrose e um pequeno câncer nos canais biliares. Sua via crucis tivera inicio em abril daquele ano, quando começou a ficar com os olhos amarelos (icterícia), tendo surtos de infecção, com queda da pressão arterial, que exigiam frequentes internações hospitalares. Ocorre que, como o caso era raro e atípico, seu médico teve que pedir autorização especial à Secretaria de Saúde para inscrevê-lo em lista. O pedido foi indeferido. Acho, aliás, que Cássio estava sendo prejudicado, justamente, e paradoxalmente, por ser médico. Como se os especialistas que julgaram o caso, desconfiassem de que houvesse alguma tendenciosidade ou até manipulação de informações a favor dele.

Inconformado, solidário e acreditando na cura do colega por meio do transplante, Paulo Massarollo telefonou para mim e perguntou sobre as chances que o caso teria de ser aceito em nossa lista, aqui em Pernambuco. Concordando com a indicação, encaminhei os dados para a Central de Transplantes de Órgãos do nosso Estado. Enquanto isso, em São Paulo, quando soube da nossa concordância e da chance concreta de aceitação em nossa lista, Paulo antecipou o seguinte diálogo com o seu paciente:

- Cassio, você toparia ser transplantado fora de São Paulo, por outra equipe?

-Com certeza Paulo. Estou sofrendo muito e está claro que é a minha única chance. Sou capaz de qualquer sacrifício que me permita sobreviver para poder criar minha filha. Vendo tudo que tenho para levantar os recursos. Não falo bem inglês, mas minha mulher fala. Quanto custaria uma cirurgia dessas, fora as despesas com passagens e hospedagem?

-Nenhum real Cássio, tampouco precisaria falar inglês. A cirurgia seria feita pelo SUS, em Recife.

-Em Recife?

-Em Recife, Cássio, pela equipe do Cláudio Lacerda.

Os minutos seguintes foram dedicados a explicar o porquê da proposta do cirurgião. A explicação era necessária, pois Cássio conhecia pessoas que saíram de Recife para ser tratadas em São Paulo, mas sair de São Paulo para ser tratado em Recife era inédito. Inédito para ele e muitas outras pessoas, mas não para a nossa equipe que já havia transplantado mais de dez pacientes procedentes daquele estado. Duas semanas depois, o caso foi discutido em nossa reunião multidisciplinar, já com a decisão favorável da Central. Foi o último caso da reunião, que terminou quando exclamei alegre: “vamos transplantar o colega”.

Cássio mudou-se imediatamente para Recife, com esposa e filha, de poucos meses de idade. Enquanto esperava seu doador, teve vários surtos de infecção nos canais biliares, que exigiram internação no Hospital Jayme da Fonte, e que agravaram rapidamente sua condição sistêmica. Passou natal e ano novo angustiado, com muito sofrimento, esperando doador, que não surgia.

Finalmente, em 8 de fevereiro de 2013, chegou o dia do seu transplante. O fígado do doador foi captado em Salvador, de um jovem de 26 anos. Montei uma equipe forte. Operamos com o esmero de sempre, mas com carinho de colega. A intervenção foi difícil pela extrema gravidade em que o paciente se encontrava, mas, felizmente, transcorreu bem, assim como o pós-operatório.

No mês seguinte, Cássio desembarcou em São Paulo com a família, onde evoluiu com recuperação plena, reassumindo, normalmente, suas atividades de médico. Desde então, todo ano, no início de fevereiro, quando o seu transplante faz aniversário, vem a Recife, cidade que, segundo ele, passou a amar como nenhuma outra, e, com a família, leva a nossa equipe a um restaurante para tomar um vinho e celebrar sua grande vitória. Vitória da medicina, da fé e da solidariedade.